Estava cansado, eu queria chegar logo em casa. Tinha 300
quilômetros de chão pela frente. Fui à rodoviária, pegar o ônibus. Sairia em
meia hora. Sentei numa lanchonete para tomar um guaraná da Amazônia e ler o
jornal.
Foi aí que apareceu o engraxate. Era um rapaz de uns 20
anos, humilde, simpático. Perguntou à moça que me atendia se não tinha aqueles
dois dedos de guaraná lááá no fundo do copo do liquidificador. Ela fingia raiva
(não sorriu), disse que ele não tinha jeito mesmo e serviu não dois dedos mas
um copo de guaraná para ele.
O rapaz olhou para mim e perguntou se eu queria engraxar os
sapatos. Sorri e antes de expressar minha surpresa com a pergunta, pois eu
estava de tênis, ele foi logo dizendo:
- Eu sei, o senhor vai falar que tá de tênis, que não dá pra
engraxar e tal, mas eu tô vendo que ele tá precisando de uma limpeza e eu posso
deixar ele como novo - e habilmente tirou uma flanela e um frasco de detergente
de dentro de sua caixa de engraxate.
Olhei para baixo e fiquei envergonhado com a sujidade dos
meus tênis.
- Pode ser?
- Pode - respondi.
Enquanto "engraxava", passando a flanela umedecida
com água e detergente, ele conversava com a vendedora de guaraná. Contou que ia
ser pai; sua namorada estava grávida. A vendedora provocou-o, perguntando se o
filho era realmente dele. Ele respondeu, sorrindo, que certeza só ia ter mesmo
depois que a criança nascesse.
- Por quê? - perguntou a moça.
- Se tiver o nariz pintado que nem eu, não vou ter dúvida
que é meu.
O engraxate tinha pequenas pintas no nariz.
- E se nascer sem o nariz pintado? - perguntou a vendedora.
Ele pensou para responder:
- Com nariz ou sem nariz...
- Sem nariz? Ave Maria! - antecipou-se a vendedora, agora com
inequívoco senso de humor.
- ... pintado, feio ou bonito, menino ou menina... eu vou
assumir.
- Teu ou não?
- Meu ou não... eu vou assumir.
E, depois de uma pausa:
- É ruim demais uma criança crescer sem pai... Mas é meu, eu
sei.
Terminou de "engraxar".
Quando paguei, ele agradeceu, disse que aquele dinheiro era
"o primeiro conto" do dia, despediu-se da vendedora de guaraná e saiu
cantando um reggae.
Engraxar tênis?
“Mas que rapaz ‘vivedor’", diria minha sábia mãe se o
conhecesse.