Pesquisar este blog

domingo, 30 de novembro de 2014

Engraxate de tênis


Estava cansado, eu queria chegar logo em casa. Tinha 300 quilômetros de chão pela frente. Fui à rodoviária, pegar o ônibus. Sairia em meia hora. Sentei numa lanchonete para tomar um guaraná da Amazônia e ler o jornal.
Foi aí que apareceu o engraxate. Era um rapaz de uns 20 anos, humilde, simpático. Perguntou à moça que me atendia se não tinha aqueles dois dedos de guaraná lááá no fundo do copo do liquidificador. Ela fingia raiva (não sorriu), disse que ele não tinha jeito mesmo e serviu não dois dedos mas um copo de guaraná para ele.
O rapaz olhou para mim e perguntou se eu queria engraxar os sapatos. Sorri e antes de expressar minha surpresa com a pergunta, pois eu estava de tênis, ele foi logo dizendo:
- Eu sei, o senhor vai falar que tá de tênis, que não dá pra engraxar e tal, mas eu tô vendo que ele tá precisando de uma limpeza e eu posso deixar ele como novo - e habilmente tirou uma flanela e um frasco de detergente de dentro de sua caixa de engraxate.
Olhei para baixo e fiquei envergonhado com a sujidade dos meus tênis.
- Pode ser?
- Pode - respondi.
Enquanto "engraxava", passando a flanela umedecida com água e detergente, ele conversava com a vendedora de guaraná. Contou que ia ser pai; sua namorada estava grávida. A vendedora provocou-o, perguntando se o filho era realmente dele. Ele respondeu, sorrindo, que certeza só ia ter mesmo depois que a criança nascesse.
- Por quê? - perguntou a moça.
- Se tiver o nariz pintado que nem eu, não vou ter dúvida que é meu.
O engraxate tinha pequenas pintas no nariz.
- E se nascer sem o nariz pintado? - perguntou a vendedora.
Ele pensou para responder:
- Com nariz ou sem nariz...
- Sem nariz? Ave Maria! - antecipou-se a vendedora, agora com inequívoco senso de humor.
- ... pintado, feio ou bonito, menino ou menina... eu vou assumir.
- Teu ou não?
- Meu ou não... eu vou assumir.
E, depois de uma pausa:
- É ruim demais uma criança crescer sem pai... Mas é meu, eu sei.
Terminou de "engraxar".
Quando paguei, ele agradeceu, disse que aquele dinheiro era "o primeiro conto" do dia, despediu-se da vendedora de guaraná e saiu cantando um reggae.
Engraxar tênis?
“Mas que rapaz ‘vivedor’", diria minha sábia mãe se o conhecesse.



terça-feira, 25 de novembro de 2014

História de uma caixa


A aula já tinha começado quando aquela meninazinha entrou com a caixa. Ou seja: ela estava atrasada. Atraso provocado por aquela caixa. Ou melhor: pelo embelezamento da caixa. Era uma simples caixa de sapato, não muito nova. Pediu à mãe que deixasse a caixa "bem bonita".
- Que arrumação é essa? - perguntou a mãe.
- A tia que pediu - explicou a meninazinha.
A tia a que ela se referia não era a irmã de sua mãe ou a irmã do seu pai, era a sua professora, a Tia Cileide do 1° Ano do ciclo de alfabetização. E não adianta explicar para a meninazinha que professora não é tia, por mais bem fundamentados pedagogicamente que estejam os seus argumentos.
Se alguém falar da Tia Cileide na sua frente, essa meninazinha, que é tão educada, pode mandar pra lua sua boa educação. É que ela vive sob o encantamento da caixa "matemágica" que a Tia levou pra escola. Tem sido assim há um mês.
Na última aula a professora comentou que no próximo ano - vejam bem, no próximo ano - cada criança deveria pedir a mãe para decorar uma caixa de sapatos e ter, assim, sua própria caixa "matemágica".
Distraída, ansiosa, encantada com aquele objeto de cujo interior a professora retirava outros objetos (numéricos, coloridos, de formas diversas), a meninazinha não ouviu a expressão "próximo ano", mas "amanhã". Chegou em casa e falou pra mãe.
A mãe - uma mãe proletária, cheia de afazeres, portanto - não "otimizou" o seu tempo (que mania têm as mães de não otimizarem seu tempo!), deixando assim pra fazer a caixa meia hora antes de a filha ir pra escola.
Amanhã você leva - disse subitamente a mãe para a meninazinha.
- É pra hoje e eu só vou pra escola se a senhora "fazer".
- Ah meu Deus! - suplicou a mãe, aborrecida.
Aborrecida ou não, lá estava a mãe com a mão na massa. E o resultado final foi uma bonita caixa, irreconhecível como ex-caixa de sapato. Arrumou a filha e mandou-a pra escola:
- Vai-vai-vai que a aula já começou.
A escola ficava a três quarteirões dali.
A meninazinha chegou atrasada, os colegas estavam sentados, a professora, de costas, arrumava sua mesa para começar a aula.
Calada, a meninazinha tocou de leve a professora e entregou a caixa. Por alguns segundos, Tia Cileide tentou entender o que estava acontecendo; logo entendeu o equívoco da criança. A meninazinha sentou-se, a professora não teve a coragem de lhe dizer que aquela caixa não era necessária naquele dia. Quem seria louco de desfazer o encanto daquele momento mágico? Você seria?

Santa Inês, Maranhão, 22 de novembro de 2014.


Para Marina, Fernanda, meus colegas orientadores de estudo, os professores alfabetizadores e todos os que lutam em prol da alfabetização na idade certa em nosso país.