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quarta-feira, 7 de março de 2018

O cabramacho




Ela estava dentro de casa quando ouviu os gritos dos vizinhos: a casa estava pegando fogo. Saiu às pressas; conseguiu se salvar. O incêndio fora provocado pelo seu companheiro, que tentou matá-la queimada, ao mesmo tempo em que destruía a casa.
Ela estava numa festa, com vários “amigos”. Começa a beber, tenta parar, mas os tais “amigos” a incentivam a continuar. Embriagada, é abusada sexualmente pelos “amigos”.
Ela estava bebendo com um colega de escola. Ele colocou algo na bebida, sem que ela percebesse. O “boa noite, Cinderela” funciona e ele abusa sexualmente dela.
Ela foi estuprada por quatro “conhecidos” seus. Engravidou, teve o filho. Passou, às vezes, a desenvolver um comportamento incoerente, imprevisível. Algumas pessoas riam dela, achando-a louca.
Ela não queria ficar sozinha em casa com o padrasto. Quando a mãe saía, o padrasto abusava dela.
Ela estava bebendo com um “amigo”, comemorando o aniversário dele. Embriaga-se, acorda na cama do “amigo” e descobre que foi abusada por ele.
Todas essas situações são reais.
São algumas das histórias que ouvi na escola, ao longo dos anos, narradas pelas próprias vítimas ou por colegas delas. A violência e a falta de respeito para com a mulher é, portanto, um problema cotidiano que, mesmo que não nos atinja diretamente, não tem como ignorá-lo, pois somos criaturas humanas que sentem, não somos pedras: como não ver ou não escutar o clamor dessas mulheres com suas almas doloridas?
“Elas provocaram”, dizem alguns cínicos, referindo-se ao estupro. É como se essa desculpa, que é do tempo-do-bumba, tentasse justificar o crime do ladrão pelo fato de a janela de sua casa não estar devidamente fechada ou você estar cochilando no banco da praça… Mas… Nem isso. Uma exposição em Bruxelas, na Bélgica, com roupas de vítimas de estupro, mostra que essa “explicação” não tem fundamento. Segundo a BBC, “a mostra traz trajes que mulheres e meninas estavam usando no dia em que sofreram a violência sexual e reúne calças e blusas discretas, pijamas e até camisetas largas”.  
Mas, se não podemos ignorar a cultura da violência contra a mulher e, principalmente, a cultura do estupro, tão perto de nós, também não podemos fingir que não vemos as idiotices postadas nas redes sociais com aquelas comparações esdrúxulas em que as mulheres são provocadas a realizar tarefas pesadas ou difíceis, em que se conclui que o sexo feminino deve, assim, conhecer o seu lugar ou, em outras palavras, reconhecer a sua submissão ao homem. São idiotices, já falei, mas são idiotices que estimulam a misoginia e que ecoam na mente fascista dos babacas que se creem machos e superiores e que acham que as mulheres podem ser agredidas ou violentadas caso “ousem” discordar das vontades do homem. Postura mais que medieval, pré-histórica, do tempo das cavernas, anacronicamente presente em pleno século XXI.
Dia desses vi uma postagem dessas, de um ex-aluno, um jovem que havia se destacado com brilhantismo no ensino médio. No texto, ele ridicularizava as mulheres. Descobri depois o seu ódio pela ex-presidenta Dilma Rousseff e a sua idolatria por Jair Bolsonaro. Não é coincidência. No Brasil, ridicularizar as mulheres, naturalizar a violência dos homens, atacar Dilma, Lula, o PT e os governos petistas, defender a ditadura e Bolsonaro tem sido um comportamento que se enquadra nessa lógica fascista: as mulheres devem ser espezinhadas no dia a dia e aniquiladas politicamente.
Quando vejo um jovem destacado nos estudos propagando o desrespeito às mulheres e se comportando como um fascista (como um fascista, Deus meu, como um fascista?) vem-me a pergunta: onde falhamos, nós, professores? Onde falhou a escola? Lembrei-me daquela mensagem deixada por um sobrevivente do holocausto nazista:
“[…] Meus olhos viram o que nenhuma pessoa devia presenciar. Câmaras de gás construídas por engenheiros ilustrados, crianças envenenadas por médicos instruídos. […] Assim, desconfio da educação. Meu pedido é o seguinte: ajudem os seus discípulos a serem humanos. […] Ler e escrever, saber História e Aritmética só são importantes se servirem para tornar os nossos estudantes humanos.”
Então, parece que temos que fazer o óbvio: propor e realizar uma Educação do Respeito; uma educação que diga e repita o óbvio: todos e todas devem ser tratados respeitosamente.
Mas, essa educação não pode ser pensada e realizada sem que revisemos o conceito de cabra-macho, expressão bem brasileira que resume o machismo planetário. Segundo o Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, cabra-macho significa: “homem destemido; valentão”. Eu, porém, desconfio que os cabras-machos possuem muitos medos, sim, e seu suposto destemor seja apenas uma fachada para ocultar aqueles medos. Principalmente o medo diante da mulher e seus mistérios… (finalmente, um pouco de poesia no texto).  
Logo, proponho que redefinamos o termo “cabra-macho”, que deve também ganhar uma nova escrita, sem hífen, ficando assim: cabramacho. Proponho também novos significados:
Cabramacho não é o que se vangloria de ter “pego” a mulher, mesmo contra a vontade dela; cabramacho é aquele que sabe ouvir a mulher e compreender seus desejos (bem como quando ela não está a fim); macho é o cabra que tem a coragem de ouvir e aceitar um “não”;
Cabramacho não é o que fica esperando que a mulher faça todo o trabalho de casa, mas o que sempre se apresenta como parceiro nas tarefas do lar;
Cabramacho não é o que dá cantadas baratas, faz elogios sexuais e ainda se acha engraçado e espirituoso; cabramacho é o que consegue conversar sobre os mais diversos assuntos com a mulher, inclusive sobre relações afetivas, sem qualquer demonstração da pretensa superioridade masculina; sabe ele, cabramacho, que os machos não são seres superiores.
Cabramacho não é o sempre-destemido, mas, ao contrário, o que tem a coragem de revelar seus medos.
Eis a síntese da cabramachice: a consciência de que os machos não são superiores.
Talvez, devamos começar por aí a revolucionária – embora, já disse, óbvia – Educação do Respeito.


Exposição na Bélgica traz roupas de vítimas de estupro para romper mito de 'culpa da mulher'. In: http://www.bbc.com/portuguese/geral-42643532. Acesso em: 06 mar 2018.
Carta de um sobrevivente do holocausto. Disponível em várias páginas na internet.