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sábado, 31 de maio de 2008

Sobre o livro didático

Tentar classificar o livro didático como vilão ou herói é simplificar a reflexão sobre o assunto. O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tem como função prover as escolas da possibilidade de escolha dos livros das diversas disciplinas, sugerindo o critério de adequação do material didático aos projetos pedagógicos das escolas.

Mas a questão é bem mais complexa.

O primeiro problema diz respeito à feitura de obras didáticas de caráter nacional, em um país de dimensões continentais, com graves diferenças regionais e sociais. A criação de um corpus didático uniforme diante de uma realidade tão complexa e contraditória é um desafio de difícil solução.

Sou professor de língua portuguesa e de língua inglesa e observo a manifestação diária desse problema nos livros didáticos de ambas as disciplinas. No caso da língua portuguesa, o maior obstáculo é o tratamento predominantemente gramatical da língua, fato este observado por Santos (s/d), quando relata que: “ao analisarmos diferentes coleções de língua portuguesa da educação básica observa-se que os chamados estudos de texto, ao invés de conduzirem o aluno à análise, compreensão e interpretação, centram-se no conteúdo gramatical normativo”.

Quanto à metodologia, a maioria dos livros de língua portuguesa que eu conheço não adota a necessária flexibilidade para a expressão regional (e local) da língua.

Em relação ao inglês, o problema é mais grave, pois livros dessa disciplina não estão incluídos no PNLD. Os livros que uso não são adotados para que os alunos os comprem, tampouco monto apostilas com ele: preparo as aulas com contribuições bibliográficas diversas, garantindo-me a liberdade para trabalhar em função das necessidades específicas das turmas.

Uma das minhas principais preocupações com o livro didático é quanto ao caráter ideológico subliminar de que alguns são constituídos. Essa questão foi analisada por vários autores, entre os quais Marina Bonazzi e Umberto Eco, no livro Mentiras que parecem verdades. Nesse livro, os autores mostram como muitas obras tentam inculcar nos alunos – de maneira falsamente inocente – valores das classes dominantes, como a aceitação das desigualdades sociais como algo natural e o patriotismo como uma exigência do caráter.

No Brasil, o fim do período militar e a maior mobilização democrática resultou na volta da liberdade de expressão e no grande volume editorial de obras que revelavam as armadilhas ideológicas contidas em alguns livros didáticos. Contudo, não é o fato de hoje vivermos sob o Estado de Direito que faz com que os valores ideológicos das classes dominantes tenham desaparecido dos livros didáticos. Não só não desapareceram, como setores que representam o grande capital hoje fazem lobbies para que as obras selecionadas no PNLD estejam dentro de critérios “aceitáveis” (ou, em outras palavras, que não questionem o status quo vigente).

O caso mais absurdo aconteceu no ano passado, quando Ali Kamel, jornalista dO Globo, escreveu um artigo irritado contra o livro Nova História Crítica. Segundo ele, o livro seria “de dar medo” e “apenas uma tentativa de fazer nossas crianças acreditarem que o capitalismo é mau”. Para tentar provar sua “tese”, o jornalista editou trechos do livro isolados do conjunto da obra. Segundo Luis Nassif, Kamel editou passagens do livro:

(...) de modo a apresentar Nova História Crítica como ridículo manual de catecismo marxista. Selecionar trechos e isolá-los do contexto talvez fosse técnica de manipulação ultrapassada, restrita aos tempos das edições dos debates presidenciais na tevê. Mas o artigo do sr. Ali Kamel parece reavivar esse procedimento.

O debate em torno da Nova História Crítica revelou parte das disputas políticas que envolvem a escolha do livro didático no Brasil. Logo, Ele é muito importante. Sem falar das disputas comerciais que envolvem a questão.

Assim, os educadores devem estar bem atentos a todos os lados do problema, pois como disse SILVA et alii (2004):

Muitas das idéias e propostas apresentadas levam a crer que os livros didáticos se constituem em materiais muito bem cuidados e elaborados que se valem de teorias e concepções modernas de ensino, que visam à integração do conhecimento prévio do aluno com o conteúdo a ser estudado. Geralmente tal apreciação não é corroborada ao se analisar esses livros (grifo nosso).

REFERÊNCIAS

A POLÊMICA sobre a nova história. In: Observatório da Imprensa. 25/09/2007.

Disponível em:

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=452JDB009

Acesso em: 29 mai 2008.

LIVROS. In: http://www.verbeat.org/blogs/gabrielazago/2005/09/livros.html

BONAZZI, Marina, ECO, Umberto. Mentiras que parecem verdades. São Paulo: Summus, 1980.

SANTOS, Ana Márcia B. dos. O livro didático nas aulas de Língua Portuguesa: usos e

des(usos). In: ALB – Associação de leitura do Brasil, s/d. Disponível em:

www.alb.com.br/anais16/sem11pdf/sm11ss01_08.pdf

Acesso em: 23 mai 2008.

SILVA et alii. A leitura do texto didático e didatizado. In: BRANDÃO, Helena & MICHELETTI, Guaraciaba (orgs.). Aprender e ensinar com textos didáticos e paradidáticos. São Paulo: Cortez, 2001.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Ler e escrever: diálogo no ciberespaço

Dizer que não se pode hoje ignorar a Internet virou um lugar-comum.

Numa época marcada por tantos problemas, por inúmeras formas de aniquilamento da noção de cidadania, apesar dos avanços (contraditórios) nas relações políticas e tecnológicas, pois, como disse Castells (2007), “el sistema político no está abierto a la participación, al diálogo constante con los ciudadanos, a la cultura de la autonomia”, poder acessar e saber usar a Internet deve constituir uma meta, principalmente para os cidadãos oprimidos, uma vez que quanto menos compreendem e desfrutam essa conquista, mais excluídos ficam das relações sociais.

Essa nova situação social – novo dilema – também põe em xeque a escola, principalmente a escola pública, no caso brasileiro, alvo de planos “sublimes” por parte dos intelectuais do Estado, aparentemente em consonância com o espírito da era da informação, mas sempre atrasados em sua execução.

Enquanto isso, muitos jovens vão se aventurando pela web. Enquanto existem educadores ainda catando letrinhas no teclado, seus pupilos teclam com desembaraço por estradas virtuais. Às vezes irreconhecíveis, pela autoridade com que agem, completamente diferentes dos sem-vozes que sempre dão um jeitinho de ficar invisíveis na superlotação de algumas salas de aula. E – coisa estranha... – lêem, escrevem e publicam na net, mais uma vez com uma insofismável (e misteriosa) segurança.

De fato, nunca se publicou tanto na Internet. Segundo Castilho (2007):

Os últimos dados sobre o fenômeno UGC (User Generated Content – Conteúdo Produzido por Usuários) revelam que 136,5 milhões de pessoas em todo o mundo devem publicar, em 2007, textos, gravações, filmes ou fotos na Web. No ano passado, a participação total de usuários era de 118 milhões e as projeções indicam que se este ritmo de crescimento for mantido, em 2011, já serão mais de 238 milhões de pessoas usando a Web como ferramenta para divulgação de conteúdos informativos produzidos por elas mesmas.

É ainda Castilho (idem) quem chama a atenção para o fato de que “a participação do público no processo da comunicação está ganhando dimensões inéditas na história da humanidade”. Apesar dos números acima, constata-se, porém, que:

Metade, tanto dos que vêem como dos que produzem material produzido por pessoas comuns, vive nos Estados Unidos e a esmagadora maioria dos textos, fotos, desenhos, áudios e vídeos publicados na Web por pessoas comuns é formada por confidências, fofocas, fotos e vídeos de animais de estimação e de amigos.

Ou seja, a publicação de conteúdos de interesse público é menos significativa que as de interesses pessoais. De qualquer forma, não se pode ignorar este dado: as pessoas são cada vez mais protagonistas na web.

Essa é uma constatação positiva. Logo, devemos deixá-la nos contaminar de forma otimista. Por exemplo, se a Internet favorece esse diálogo, se no ciberespaço noss@s alun@s sentem-se mais à vontade com a escrita e a leitura, porque não sermos seus companheiros de viagem? Está aí uma oportunidade de fazer das relações escolares um diálogo sincero, autêntico, uma reflexão concreta, viva, dinâmica, com um significado intenso, verdadeiro.

Munidos dessa perspectiva, podemos auxiliá-los a ampliar seu protagonismo na rede: se já dominam o orkut, os diversos chats e o youtube, que tal construirmos páginas virtuais – blogs – com textos que possam tornar realmente significativos os conteúdos escolares? Como bem define Souza (2006), “o blog é um tipo de página virtual de fácil criação e uso cada vez mais comum, além de constituir um território democrático que propicia a reflexão e o diálogo”. Moreira (2005) enfatiza que o blogueiro pode “ter voz própria e descrever seus sentimentos, pensamentos, crenças, ações, descobertas, publicar informações e vincular outros blogs ao seu e formar redes de blogs e de pessoas, que poderiam mais tarde formar uma comunidade”.

Temos então a tarefa de seduzi-los para o blog. Tarefa maior, no entanto, é ajudar os demais – que ainda não tiveram a chance de conhecer a Internet – a penetrar nesse estranho território, sem que o vejam, de antemão, como uma “selva de pedra” virtual. Em ambas os desafios, o educador deve estar preparado para a convivência democrática e para a superação de noções arcaicas, frutos da tradição e do senso comum, e que ocultam falsos valores pedagógicos (e ideológicos). A principal delas: a noção da “língua como entidade abstrata e homogênea” (Bagno, 2006). Essa visão é contraditória com a necessária liberdade de criação, pois, como afirma Bagno (idem):

Ao contrário da Gramática Tradicional, que afirma que existe apenas uma forma certa de dizer as coisas, a Lingüística demonstra que todas as formas de expressão verbal têm organização gramatical, seguem regras e têm uma lógica lingüística perfeitamente demonstrável. Ou seja: nada na língua é por acaso.

Para o lingüista, na relação com a linguagem, a escola constitui “o lugar de interseção inevitável entre o saber erudito-científico e o senso comum, e que isso deve ser empregado em favor do aluno e da formação de sua cidadania”.

E, se constatamos também que a realidade deve ser lida em links – algo que soa óbvio, mas que foi preciso surgir a Internet para alarmar essa obviedade – apresenta-se aí a chance de criarmos uma outra “web”: uma rede social de leitores. Se o vocabulário de Memórias Póstumas de Brás Cubas parece difícil para noss@s alun@s, que tal envolvê-los em algumas das questões presentes no romance, como, por exemplo, o cinismo escravocrata do seu protagonista? Podemos, dessa forma, estender o campo de percepção da obra e de alguns dos problemas que aponta, buscando referências em sites literários, jornais e revistas (como a presença de trabalho escravo em pleno Brasil do século XXI), selecionando o que há de mais pertinente e interessante e publicando no(s) blog(s) (individuais ou coletivos).

Este é apenas um dos tantos caminhos que podemos adotar nessa prática que une hipertexto, produção textual e o livro – e se este livro for um clássico, melhor ainda, pois como disse Calvino (1981), “os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram”.

Tais questões merecem ser aprofundadas, ficando como conclusão o sentimento expresso por José Luis Rodríguez Zapatero em relação à obra de Jorge Luis Borges, no prefácio às Ficções: “el lector debe estar tranquilo, porque él es el verdadero héroe de la obra”. Esse deve ser nosso propósito: que noss@s alun@s se sintam heróis/heroínas de suas próprias buscas e histórias.

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso. Disponível em:

http://www.marcosbagno.com.br/arq_textos.htm

Acessso em: 24 mai 2008.

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Disponível em:

www.fcsh.unl.pt/borgesjorgeluis/ficheiros/VOL1/Ficciones.pdf

Acesso em: 26 mai 2008.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Disponível em:

http://www.lumiarte.com/luardeoutono/calvino.html

Acesso em: 28 mai 2008.

CASTELLS, Manuel. El poder tiene miedo de Internet. Entrevista a El País. 06/01/2008. Disponível em:

http://www.elpais.com/articulo/reportajes/poder/tiene/miedo/Internet/elpepusocdmg/20080106elpdmgrep_5/Tes

Acesso em: 27 mai 2008.

CASTILHO, Carlos. Usuários publicam cada vez mais na Web e começam a mudar padrões informativos. In: Observatório da Imprensa. 14/07/2007. Disponível em:

http://200.226.127.23/blogs.asp?id_blog=2&dia=14&mes=7&ano=2007

Acesso em: 28 mai 2008.

MOREIRA, Tânia Maria. Blog pedagógico: é possível visualizar um novo horizonte? In: TVE Brasil. Disponível em:

www.tvebrasil.com.br/SALTO/boletins2005/nfa/tetxt3.htm

Acesso em: 28 mai 2008.

SOUZA, Gilcênio Vieira. O blog como narrativa pedagógica. In: Diário Pedagógico. 06/07/2006. Disponível em: http://diariopedagogico.blig.ig.com.br

Acesso em: 28 mai 2008.