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domingo, 14 de agosto de 2022

Era uma vez em Hollywood no sertão do Cariri

 



Há alguns dias, os canais Sony e AXN exibem uma programação de filmes representativos dos anos sessenta, período em que se passa a trama do novo filme de Quentin Tarantino, “Era uma vez em Hollywood”. O próprio Tarantino faz a apresentação das obras, escolhidas por ele, num bate-papo com a crítica de cinema Kim Morgan. Imperdível.
A coincidência de essa programação especial ocorrer durante essa semana e concluir exatamente hoje, Dia dos Pais, me traz boas recordações do meu pai, sua paixão pelo cinema hollywoodiano e o quanto essa paixão me influenciou.
Durante a sua infância, o senhor Luís Vieira Souza, meu pai, acostumou-se a descer o distrito de Santa Fé em cima de um burro, acompanhante assíduo do seu Manoel, meu avô e pai de papai, rumo ao grande encontro social que era a feira do Crato (e que talvez ainda o seja, pois saibam que as feiras do Nordeste não perderam o seu encanto). Para vovô, esse era o momento daquela prosa bem destilada nas conversas dos amigos, e ele próprio prosear seus causos e alumbramentos. A tal ponto que, certa vez, concentrado em seus proseamentos, vovô esqueceu de papai em cima do burro, que desembestou numa carreira e arremessou papai bem longe. Uma cicatriz no início da calva era lembrança dessa desventura infantil.
Aos dezoito anos, papai já descobrira o cinema. Desceu a Serra do Araripe e chegou a Hollywood. Frequentava as salas do Cine Roulien e do Cine Eldorado, em Juazeiro do Norte. Setenta anos atrás, os cinemas de Juazeiro exibiam uma programação bem diversificada, entre os quais, um capa-e-espada, “O máscara de ferro”, anunciado no “Correio do Juazeiro” como “o primeiro filme americano falado em portuguez”, um filme noir, “A dama de jade”, uma comédia com Virginia Mayo (“Por um corpo de mulher”), “Além do horizonte azul”, em que a atriz Dorothy Lamour exibia na selva seus dotes sensuais, antes de virar musa de Ednardo (“Dorothy L'amour / Com amor te matei / Sereia, n'areia do cinema”)...
Mas, minha intuição me diz que o filme que papai assistiu naquele longínquo agosto de 1949, mais precisamente num sábado, 13, há setenta anos, foi “Máscara do terror”: a estreia do herói Durango Kid nas telonas; pois papai era fã de faroestes. Foi através dele que ouvi pela primeira vez os nomes de John Wayne e Randolph Scott (que papai chamava de Rodolfo Scott), além de Glenn Ford (que ele descrevia como um “mole”), Robert Mitchum, Charles Bronson, Lee Van Cleef, Clint Eastwood. Muito cedo, por influência paterna, ainda adolescente, passei não somente a gostar de cinema, mas a conhecer atores, atrizes e, por conseguinte, diretores, e a olhar um filme a partir dessas referências.
O cinema, Hollywood, principalmente, educou determinada maneira de papai entender o mundo. Embora ainda hoje mamãe relate a emoção que foi assistir com papai a “O cangaceiro” (1953), sabemos que as produções brasileiras sempre foram historicamente minguadas, diluídas pela onipresença de Hollywood em nossas salas de cinema. Editorial da revista “Cena muda”, de 7 de dezembro de 1950, comemorava “o decreto de proteção ao cinema brasileiro, obrigando os exibidores a projetarem em suas telas nada menos que SEIS filmes nacionais por ano”. Desnecessário comentar: a palavra “seis” já está em caixa alta. Quando, no início dos anos 60, papai e mamãe viajaram para Guajará-mirim, no Amazonas, e papai voltou chamando os índios de burros... - foi tudo culpa de John Wayne.
Hollywood intensificou os sentimentos de estranhamento e evasão de papai? Talvez. Ele também gostava de evadir-se na vida real. Tinha temperamento artístico. Era um romântico. Seu Luís tinha uma prosa envolvente, uma capacidade hollywoodiana de encantar as pessoas em seus enredos. Imagino-me como cineasta, câmara na mão, filmando a seguinte cena: é noite e dezenas de pessoas estão paradas diante de uma bodega, a “Casa 21 de Junho”, anunciada, no alto, numa placa com a propaganda de Fanta. Olham para o céu, enquanto, dentro da bodega, uma senhora (mamãe) olha timidamente para os lados. As pessoas na calçada procuram localizar um OVNI. Um senhor (papai), solícito, atencioso, lhes guia na trajetória celeste que o disco voador acabara de fazer. Eu, garoto, assisto a tudo. Minutos depois (não lembro quanto tempo durou a “performance”), dispersas as pessoas, mamãe recrimina papai por ter inventado a história do OVNI, o qual, apenas responde, tranquilo: “Tem nada não, Maria”. Tem nada, papai: é a pequena cota de fantasia que todos, nós, seres humanos, temos direito a gozar, na vida real.

P. S.: um dos cineastas daquela semana de agosto de 1949, Phil Karlson, diretor do noir “A dama de jade” (será que papai viu o filme?), é também o diretor de “The wrecking crew”, cujo lançamento mundial aconteceu exatamente um mês após o meu nascimento, em 05/02/1969, e foi exibido ontem como um dos filmes escolhidos por Tarantino nesse diálogo com o seu “Era uma vez em Hollywood”. The wrecking crew foi o último filme de Sharon Tate exibido antes do assassinato da atriz, um dos motes do novo filme de Tarantino.
 
 
 
Pio XII, Maranhão, 11 de agosto de 2019.

Soneto imperfeito para o Dia dos Pais

 


Meu pai (que já partiu) era um grande matemático,
Um grande matemático sem diploma.
Comunicativo, provava que quem tem boca vai a Roma.
Era bem humorado e emotivo, sem ser romântico.

Sem que saiba disso, ensinou-me a brincar com meus filhos,
Ensinou-me a voltar a ser criança, quando adulto,
E mesmo imperfeito e ingênuo, mas querendo ser absoluto,
Não me conduziu pela mão, mostrou-me os trilhos.

Por amor, a gente também vira pai um dia,
Mesmo sem conhecimento de causa ou faculdade.
Por isso uma coisa tu deves ensinar aos teus pequenos:

A se opor à opressão desde a mais tenra idade,
A combater os opressores e seus venenos,
Que possam ser dignos, sem nunca perder a alegria.


Pio XII, Maranhão, 12/08/2012, 23 horas e 14 minutos.