Há
alguns dias, os canais Sony e AXN exibem uma programação de filmes
representativos dos anos sessenta, período em que se passa a trama do
novo filme de Quentin
Tarantino, “Era uma vez em Hollywood”. O próprio Tarantino faz a
apresentação das obras, escolhidas por ele, num bate-papo com a crítica
de cinema Kim Morgan. Imperdível.
A
coincidência de essa programação especial ocorrer durante essa semana e
concluir exatamente hoje, Dia dos Pais, me traz boas recordações do meu
pai, sua paixão pelo cinema hollywoodiano e o quanto essa paixão me
influenciou.
Durante
a sua infância, o senhor Luís Vieira Souza, meu pai, acostumou-se a
descer o distrito de Santa Fé em cima de um burro, acompanhante assíduo
do seu Manoel,
meu avô e pai de papai, rumo ao grande encontro social que era a feira
do Crato (e que talvez ainda o seja, pois saibam que as feiras do
Nordeste não perderam o seu encanto). Para vovô, esse era o momento
daquela prosa bem destilada nas conversas dos amigos, e ele próprio
prosear seus causos e alumbramentos. A tal ponto que, certa vez,
concentrado em seus proseamentos, vovô esqueceu de papai em cima do
burro, que
desembestou numa carreira e arremessou papai bem longe. Uma cicatriz no
início da calva era lembrança dessa desventura infantil.
Aos
dezoito anos, papai já descobrira o cinema. Desceu a Serra do Araripe e
chegou a Hollywood. Frequentava as salas do Cine Roulien e do Cine
Eldorado, em Juazeiro do Norte. Setenta
anos atrás, os cinemas de Juazeiro exibiam uma programação bem
diversificada, entre os quais, um capa-e-espada, “O máscara de ferro”,
anunciado no “Correio do Juazeiro” como
“o primeiro filme americano falado em portuguez”, um filme noir,
“A dama de jade”, uma comédia com Virginia Mayo (“Por um corpo de
mulher”), “Além do horizonte azul”,
em que a atriz Dorothy Lamour exibia na selva seus dotes sensuais, antes
de virar musa de Ednardo (“Dorothy L'amour / Com amor te matei /
Sereia, n'areia do cinema”)...
Mas,
minha intuição me diz que o filme que papai assistiu naquele longínquo
agosto de 1949, mais precisamente num sábado, 13, há setenta anos, foi
“Máscara
do terror”: a estreia do herói Durango Kid nas telonas; pois papai era
fã de faroestes. Foi através dele que ouvi pela primeira vez os nomes de
John Wayne e Randolph Scott (que
papai chamava de Rodolfo
Scott), além de Glenn Ford (que ele descrevia como um “mole”), Robert
Mitchum, Charles Bronson, Lee Van Cleef, Clint Eastwood.
Muito cedo, por influência paterna, ainda adolescente, passei não
somente a gostar de cinema, mas a conhecer atores, atrizes e, por
conseguinte, diretores, e a olhar um filme a partir dessas referências.
O
cinema, Hollywood, principalmente, educou determinada maneira de papai
entender o mundo. Embora ainda hoje mamãe relate a emoção que foi
assistir com papai a “O
cangaceiro” (1953), sabemos que as produções brasileiras sempre foram
historicamente minguadas, diluídas pela onipresença de Hollywood em
nossas salas de cinema. Editorial da revista “Cena
muda”, de 7 de dezembro de 1950, comemorava “o decreto de proteção ao
cinema brasileiro, obrigando os exibidores a projetarem em suas telas
nada menos que SEIS filmes nacionais por ano”. Desnecessário
comentar: a palavra “seis” já está em caixa alta. Quando, no início dos
anos 60, papai e mamãe viajaram para Guajará-mirim, no Amazonas, e papai
voltou chamando os índios
de burros... - foi tudo culpa de John Wayne.
Hollywood
intensificou os sentimentos de estranhamento e evasão de papai? Talvez.
Ele também gostava de evadir-se na vida real. Tinha temperamento
artístico. Era um romântico.
Seu Luís tinha uma prosa envolvente, uma capacidade hollywoodiana de
encantar as pessoas em seus enredos. Imagino-me como cineasta, câmara na
mão, filmando a seguinte cena: é noite e dezenas de pessoas
estão paradas diante de uma bodega, a “Casa 21 de Junho”, anunciada, no
alto, numa placa com a propaganda de Fanta. Olham para o céu, enquanto,
dentro da bodega, uma senhora (mamãe) olha timidamente
para os lados. As pessoas na calçada procuram localizar um OVNI. Um
senhor (papai), solícito, atencioso, lhes guia na trajetória celeste que
o disco voador acabara de fazer. Eu, garoto, assisto a tudo.
Minutos depois (não lembro quanto tempo durou a “performance”),
dispersas as pessoas, mamãe recrimina papai por ter inventado a história
do OVNI, o qual, apenas responde, tranquilo: “Tem
nada não, Maria”. Tem nada, papai: é a pequena cota de fantasia que
todos, nós, seres humanos, temos direito a gozar, na vida real.
P.
S.: um dos cineastas daquela semana de agosto de 1949, Phil Karlson,
diretor do noir “A dama de jade” (será que papai viu o filme?), é também
o diretor
de “The wrecking crew”, cujo lançamento mundial aconteceu exatamente um
mês após o meu nascimento, em 05/02/1969, e foi exibido ontem como um
dos filmes escolhidos por Tarantino nesse diálogo
com o seu “Era uma vez em Hollywood”. The wrecking crew foi o último
filme de Sharon Tate exibido antes do assassinato da atriz, um dos motes
do novo filme de Tarantino.
Pio XII, Maranhão, 11 de agosto de 2019.