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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Janelas, ainda



Ontem foi dia de rever um clássico: “Janela indiscreta”, de Hitchcock. O fotógrafo com a perna engessada, sentado o dia todo, observando da sua janela a vida da vizinhança, até que supõe ter ocorrido um assassinato num dos apartamentos do outro lado. Bem apropriado para o momento. 
As janelas eram (ainda são?) a película que aproximava casa e sociedade. Num tempo em que as janelas podiam ser abertas. No ano passado, visitando minha cidade natal, Juazeiro do Norte, fiquei abismado com a quantidade de casas com grades nas janelas. Se tem grades, já não são mais janelas. 
Na minha infância, não se viam engradados nas casas. As janelas eram realmente janelas. Serviam para a interação, para o contato humano. Lembrei de algumas letras do Chico:
“O tempo passou na janela e só Carolina não viu.”
“Como essa moça é descuidada, com a janela escancarada.”
Ou, aqueloutra, mais famosa: 
“A moça feia debruçou na janela, pensando que a banda tocava pra ela” (que deixou o Chico tão de saco cheio, que ele fez a mala e correu, para não ver a banda passar).
Houve um tempo em que as janelas facilitavam o encontro amoroso. Era engraçado: a moça na janela sorria para o rapaz que passava, e este chegava em casa flutuando: “Acho que estou amando!”. Lembram do Álvares de Azevedo? 
“Eu a vi... minha fada aérea e pura —
a minha lavadeira na janela”. 
Irônico, sem deixar de ser romântico. 
Cena bem comum, pelo interior do Brasil, num tempo não tão distante: pessoas amontoadas por fora de uma janela, olhando para dentro da casa, e tanto os de dentro como os de fora, hipnotizados pela televisão. Sim, a televisão, nosso primeiro black mirror. Ou seja, de uma janela, que dava para o seu mundo real, você olhava para outra janela, que dava para um mundo ficcional, fossem as novelas, fosse o Jornal Nacional, escondendo os crimes da ditadura e fazendo crer que vivíamos num país abençoado por Deus. 
Os que não tinham dinheiro para adquirir uma televisão, iam assistir, pela janela, na televisão do vizinho. Os mais solidários, convidavam para entrar. Os mais ranzinzas às vezes fechavam a janela na cara de uns menininhos buchudos e remelentos, que só queriam se divertir, vendo desenho animado ou saber como terminaria o filme emocionante da sessão da tarde... 
Nos dias atuais e principalmente nesse Brasil de ignorância e trevas, as janelas têm servido para protestar contra o governo fascista e o seu descaso no combate ao coronavírus: são os panelaços. 
Quanto às janelas virtuais, as lives têm nos distraído do medo e da dor causados pela pandemia. Inclusive, o 1º de maio deste ano, amanhã, organizado pela Central Única dos Trabalhadores, será uma grande live que unirá artistas e políticos. 
Então, combinemos mais uma vez, as janelas podem, sim, propiciar uma conexão real e bem sucedida: só precisam ser abertas para as pessoas certas.


Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Janelas



Desde ontem que passei a publicar textos inéditos, dando continuidade ao projeto "Fique em casa que eu te dou um conto". Ontem, um poema. Hoje e nos próximos dias, crônicas.


Janelas 


Acordei hoje com uma música na cabeça:

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!
[...]
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle [...] 

A música é “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto. 
Devo ter sonhado com enquadramentos, com janelas. Normal, em se tratando da época em que estamos vivendo. O isolamento tem feito com que olhemos a vida pelas janelas. Sejam elas as janelas físicas dos nossos lares ou as janelas virtuais dos celulares, tablets, computadores. A gente está se acostumando a procurar enxergar a vida-através-da-janela. 
Agora há pouco, por exemplo, enquanto eu lavava os pratos, antes do café, e ouvia Adriana Calcanhoto no celular, na janela do apartamento em frente tocava uma música bem ritmada. Parei o que estava fazendo, pausei a música que estava ouvindo e olhei para a janela do outro lado. Mas... Não foi possível identificar a música; nem imaginar a vida dos meus vizinhos, por trás da janela, à minha frente. 
Depois do café, abro a janela do meu celular. Diante dos olhos, várias outras janelinhas. Abro a janelinha do WhatsApp. Mas, antes que vocês se unam em coro, repetindo “Viciado! Viciado!”, explico: vou interagir com meus alunos e minhas alunas. É que desde que as aulas foram interrompidas, em função da pandemia, o famoso aplicativo, tão popular no Brasil, tem sido nossa principal ferramenta educacional; minha e de outros e outras professores e professoras. 
Quem, dentre nós, diria, um mês e meio atrás, que o WhatsApp seria “uma janela para o saber”? Poético, não? Bem que estamos tentando transformar em realidade essa poesia educacional, mas... 
Bem ou mal sucedidos, descobrimos a importância das redes sociais, para além da superficialidade de que são acusadas. No caso do uso educacional do WhatsApp, os alunos têm reclamado, não do aplicativo em si, nem das aulas, mas do excesso de postagens e de atividades. E, em pensamento, alguns de nós, professores, com caras de diabinhos: “Então, vocês estão se reclamando que não aguentam mais pegar o celular e topar com ele cheio de mensagens? Que engraçado!...”
Alguns dos nossos estudantes podem questionar onde está o humor dessa situação. Mas, peço que me perdoem, uma das coisas que mais me diverte, faz uma semana, é uma mensagem em áudio de uma aluna, em que, reclamando das aulas online, ela diz (textualmente): “Professor, tem dia que eu não faço é dormir. Só fazendo essas atividades. Tu é doido, siô! Tem dia que eu faço é chorar aqui, dentro do meu quarto.” O sem-coração aqui vai às gargalhadas, ouvindo essa gravação, principalmente pelo tom verdadeiramente choroso da voz e, sei lá, o inusitado da situação. 
Então, estoicamente, professores e estudantes, tentam contornar o isolamento sócio-educacional através dessa experiência online, em que se sobressai o desejo de acertar, abrindo janelas virtuais e apostando na vontade de aprender. 
A experiência educacional já foi bem pior, pois havia menos janelas. Em 1997, fui contratado para dar aulas de português e matemática a um grupo de pessoas, moradoras do povoado Juçaral do Vital, zona rural do município de Pio XII. As aulas aconteciam aos domingos. Um taxista me levava e me trazia. As aulas tinham como conteúdo os assuntos constantes no edital do concurso que a prefeitura realizaria. 
Ao final do primeiro domingo de uma bem sucedida aula, quando voltávamos para casa, o taxista parou o carro, a pedido de um homem, na beira da estradinha empoeirada. Baixei o vidro e, pela janela do carro, vi lá fora um homem jovem, pequeno, que sorriu para nós. 
– Tudo bem, né? 
– Tudo bem, respondi, retribuindo a simpatia. 
– Pois é...
– Pois é... – repetiu o motorista. 
– Té mais, disse o rapaz lá fora. 
– Até, repeti. 
Cinco minutos depois, o taxista me perguntou:
– Sabe quem é aquele ali? 
– Não. 
– O Carrada. 
– O Carrada? 
– O Carrada. Ele veio assuntar quem tu era. 
Nessa época, o Carrada era enquadrado nas colunas policiais como um dos mais perigosos bandidos do Maranhão. A ele eram atribuídos assaltos, sequestros, assassinatos... Um dia antes daquele domingo, lembro de uma vizinha gritando com o filho, que brincava na rua:
– Menino, tu entra pra dentro!! Tomara que o Carrada chegue aí e te carregue, maluvido!! 
Pois bem. Então, o Carrada era o terror em pessoa. Mas, da janela do carro, o que eu via era um rapaz que, fisicamente, não representava ameaça visível (ele morreria alguns anos depois, em troca de tiros com a polícia; versão oficial). 
Então, combinemos, estudar era mais difícil, ensinar mais ainda. Contudo, o que a metáfora da janela parece querer nos dizer é que nem sempre o “real” é apresentado no enquadramento que capta os nossos olhos? Ou, vou no popular, quem vê cara não vê coração, e a história do Carrada é uma parábola sobre isso? 
Nossos olhos são captados – ou seria melhor dizer, capturados – pela imagem, e não o contrário. Isso tem acontecido bastante, nesses tempos de redes sociais e manipulações virtuais. Mas não entremos em pânico. Não venham dizer que o mal reside no outro lado da telinha. O mal e o bem residem em qualquer lugar. Uma das coisas positivas dessa pandemia é que o black mirror se mostrou mais solidário que monstruoso. 
Quanto a não sabermos o que as pessoas escondem atrás das janelas de suas almas ou até que ponto estão realmente conectadas umas com as outras, isso independe da forma do contato, se no corpo-a-corpo ou por meio de um aplicativo de celular. Posso estar conversando com uma pessoa, sentada ao meu lado, e o seu pensamento estar longe, completamente desconectada de mim, dos meus pensamentos, dos meus sentimentos... 
Lamento, leitores e leitoras, interromper essa crônica no exato momento em que ela parecia estar se tornando profunda e necessária. É que eu a escrevo no celular, andando de um lado para o outro do apartamento e, ao olhar da janela da sala, percebo a vizinha à frente me observando... Vou parar por aqui: deitar ali na semiescuridão do quarto e ouvir Adriana Calcanhoto, pequena pausa antes de postar, no WhatsApp, minha próxima aula de língua portuguesa.


São Luís, 29/04/2020, 16h10min.


Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com
By, Noe Calderon: https://pixabay.com/pt/users/noe_calderon-7222335/


Para curtir “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto: https://m.youtube.com/watch?v=XwddDUCbEVw


terça-feira, 28 de abril de 2020

Pra não pirar


Pausa para um poema...

Depois do poema de hoje, volto a postar contos, amanhã.
Somente contos inéditos. A segunda fase, digamos, do projeto "Fique em casa que eu te dou um conto".

Por enquanto, pausa para um poema...


Pra não pirar 

Pra não pirar, eu danço 
Pra não pirar, eu canto 
Pra não pirar, eu ensino 
Pra não pirar, eu aprendo 
Pra não pirar, eu luto 
Pra não pirar, eu sonho 
Pra não pirar, eu durmo 
Pra não pirar, me levanto 
Pra não pirar, eu lembro 
Pra não pirar, relembro
Pra não pirar, eu escrevo 
Pra não pirar, imagino
Pra não pirar, trabalho 
Pra não pirar, vagabundeio
Pra não pirar, eu brinco 
Pra não pirar, acho graça de mim 

Arte

pra 
não 
pirar 

Conecto 
Reconecto
Vejo 
Falo 
Escuto 
Proseio
Poesomatizo tudo:
Pra não pirar 

Pra não pirar: 
uma sereia
no meu mar

Pra não pirar: 
no vento da madrugada, 
viajar 

Pra não pirar: 
um táxi
lunar 

Pra não amofinar, eu me confino 
Dentro do coração
(É que ele não tem paredes) 
E num balanço duma webrede 
Meus sonhos 
Atravessam o (de)sertão 
É o meu pão 
Dividido com alegria 
Nesse café virtual 

(Quem dera, 
um mundo novo, 
já...)

Pra não pirar, 
eu amo. 
Tá?




Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 
By Alexas_Fotos: https://pixabay.com/pt/users/alexas_fotos-686414/

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Anedotas sur(reais)


A mulher, no nono mês de gravidez, aflita, pois se aproxima a hora do parto, procura o prefeito:
– Eu queria que o senhor me arranjasse um carro pra eu ir ter meu filho em São Luís.
O prefeito, chateado, se levanta e esbraveja:
– É assim mesmo! Vai nascer o filho, tá precisando de um carro, vem me procurar! Mas na hora de fazer não me procura...


* * *


O homem procura o prefeito e pede uma ajuda para o transporte, para voltar para sua casa, na zona rural.
O prefeito diz que não tem.
O homem insiste:
– Mas é só 5 real!
O prefeito:
– Não tenho! Pode enfiar a mão nesse bolso aqui – e aponta para o bolso direito da calça –, você não vai encontrar nada!
O homem se aproxima e tenta enfiar a mão no bolso esquerdo do prefeito.
E o prefeito:
– Eu disse esse bolso aqui! – volta a apontar para o bolso direito e afasta-se rapidinho do “intrometido”.


* * *


Um cidadão pobre está com os filhos doentes, procura o vereador em quem votou e mostra uma receita: precisa de dinheiro para comprar os remédios.
O vereador finge que lê a receita e dá uma de coitadinho:
– Eu queria ajudar, mas não tenho agora e meu salário só sai daqui a quinze dias.
O cidadão insiste: não poderia comprar fiado em alguma farmácia, para o vereador pagar depois?
E o vereador: não, depois da eleição tinha cortado os “fiados”.
O cidadão sai cabisbaixo, sem saber o que fazer.
Distancia-se um pouco e, por trás dele, o vereador:
– Aqui o que eu tenho pra ti! – e faz um gesto obsceno, que o cidadão não vê.
O vereador pensa que ninguém viu. Eu vi.


* * *


Campanha eleitoral. O candidato a prefeito dirige-se a um antigo adversário e possível candidato a vereador e solta essa:
– ... Olha que eu já pensei até em mandar te matar, mas hoje eu te convido a ficar do nosso lado!
Mais convincente, impossível.


* * *


Prefeitura. Secretariado reunido a portas fechadas, dividindo um “dinheirinho” extra. Divisão feita com “justiça”: nenhum recebeu mais que o outro. Alegria estampada na cara de todos.
Alguém lembra que está faltando um secretário.
– É só a gente não deixar ele saber! – diz um dos secretários, sussurrando.
– É! – concordam todos – Silêncio sobre o assunto! – reitera outro, ainda sussurrando.
Mas eis que batem na porta e... surpresa! É o secretário que faltava.
– Não me mandaram convite pra festa, mas eu espero que tenham guardado um pedaço do bolo pra mim!
Os outros trocam olhares, atônitos.
Até que o secretário responsável pela partilha intervém:
– Como é que a gente ia esquecer de tu? – abre a gaveta e tira de lá outro “bolo” de notas.
– Tá aqui o teu – e passa o dinheiro ao recém-chegado, que, faz uma rápida conferência, olha pra todos, diz “ai, chica!” e sai mais rápido que entrou.
O que tinha “dividido o bolo” vê a cara de perplexidade dos outros com a súbita aparição daquele novo pacote de dinheiro e explica:
– Essa foi por pouco! Se eu não fosse esperto... Eu sabia que ele ia aparecer e já deixei separado o dele!!
Os outros ainda continuaram por alguns segundos com cara de poucos amigos (aliás, nessa hora, eles preferiam não ter amigo nenhum).


Do livro "Pio XII: ficção & memória", 2019.

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

domingo, 26 de abril de 2020

A mala (da série "Anedotas (sur)reais")


Casa do prefeito. A empregada está no quarto do “hômi” quando a vassoura esbarra numa mala embaixo da cama. Sabendo que ali tinha coisa, a empregada sai para chamar a primeira dama.
A primeira dama chega, acompanhada de uma das filhas, que é quem abre a mala: se deparam com muito dinheiro, notas novinhas, devidamente separadas.
– O papai não pode deixar isso aqui – diz a filha, resoluta.
Logo chegam os outros filhos e o prefeito. O “hômi” ouve recriminações de todos os lados (menos da primeira dama, que era primeira só no nome, mas sempre a última a saber das coisas, a dar pitacos e outras coisas mais).
– Papai, todo esse dinheiro não pode continuar aqui! Onde é que o senhor está com a cabeça?
– E o que é que eu faço agora? – pergunta sinceramente o prefeito.
– Deixem comigo, eu guardo esse dinheiro num lugar bem seguro – é o filho mais velho, estrategista.
Tudo bem, dizem as vozes, babelicamente.
– Ok – diz o filho –, então assunto encerrado, todo mundo se comportando como se nada tivesse acontecido!
Começam a sair do quarto, aliviados, mas a primeira dama resolve assumir o seu posto e volta, curiosa:
– Meu filho, onde é esse lugar seguro que você vai esconder o dinheiro?
E o filho:
– Debaixo da cama – e a mala volta para o lugar de onde tinha saído.


Do livro "Pio XII: ficção & memória", 2019.

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

sábado, 25 de abril de 2020

O departamento


Era uma moderna prefeitura do interior do país. E aquele era um dos seus departamentos mais importantes: o importantíssimo Departamento Municipal de Impostos e Taxas. 
Sinal da modernidade do Departamento era que um moderníssimo computador e uma impressora ainda mais moderna estavam lá, em suas respectivas caixas, as quais – novas e lacradas – davam ao Departamento um ar de perfeita modernidade. E, embora, ainda estivessem nas caixas, só a presença daqueles avançadíssimos instrumentos naquela repartição pública mostravam que as coisas jamais seriam as mesmas e que o prefeito cumpria a promessa feita há três anos de modernizar o Departamento (evidente que os cidadãos torciam muito para que aquelas caixas não ficassem lacradas por mais três anos).
Era naquele Departamento que os cidadãos cumpriam com o dever cívico de pagar os tributos municipais e contribuir com o desenvolvimento da cidade. Aquele cidadão, o senhor Hamilton Bandeira, recém-chegado à cidade, ia fazer exatamente isso: legalizar a pequena propriedade rural, há pouco adquirida, e pagar o imposto devido. 
Foi muito bem recebido pelo senhor Hidelfonso de Alencar, dedicado funcionário do Departamento, que solicitou ao senhor Hamilton Bandeira que apresentasse o documento, a escritura do imóvel. Deveria deixá-la e, no dia seguinte, vir buscar o documento novo e pagar o imposto devido. Hidelfonso guardou a escritura na primeira gaveta que encontrou. O senhor Hamilton Bandeira agradeceu e prometeu voltar no dia seguinte.
Quando o Secretário Municipal de Finanças chegou, o respeitável senhor Roberto Feitosa, o eficiente Hidelfonso de Alencar comunicou-lhe sobre a visita do senhor Hamilton Bandeira e que este voltaria no dia seguinte para legalizar seu imóvel e cumprir com suas obrigações tributárias. Por estar naquele dia com uma forte dor de cabeça, o secretário municipal adiou para a manhã seguinte a emissão do documento do senhor Hamilton Bandeira.
Só que, à noite, o vigia do Departamento – o senhor José do Nascimento da Silva, popularmente conhecido como João Camboja, trabalhador incansável, apesar dos seus 65 anos – resolveu fumar.
Até aí nenhum problema, exceto a atitude politicamente incorreta de João, o vício do cigarro (vamos dar um desconto para ele: o coitado levara uma vida difícil na roça, era órfão de mãe e o pai o tratara a vida toda como um animal).
Pois foi que, para fazer o seu cigarrinho de pacaia, João Cambão precisava de papel. Abriu a primeira gaveta que encontrou, aquela dita cuja gaveta, retirou de lá a escritura do senhor Hamilton Bandeira e fez com ela um gostoso cigarro.
Depois de mais alguns cigarros e aquela conversa de calçada típica do interior do país, João Cambão foi dormir. Dormia no próprio Departamento, é claro. Assim, puxou o colchão velho e esburacado que guardava por trás do armário do Departamento, colocou-o sobre a mesa e ajeitou-se para o sono. Cumpria assídua e pontualmente sua jornada de trabalho: só despertava às 6 da manhã, quando se levantava e ia para casa.
No dia seguinte, o secretário municipal procurou a escritura para providenciar a emissão do imposto do senhor Hamilton Bandeira, mas não a encontrou (pudera: tinha sido fumada por João Cambão...). O senhor Roberto não entendia, pois o sempre eficiente Hidelfonso de Alencar, seu subordinado, lhe dissera que a escritura estava na gaveta... Para completar, nada de Hidelfonso chegar.
Quem chegou foi o senhor Hamilton. O secretário municipal pediu que esperasse um pouco, enquanto aguardava a chegada de Hidelfonso para lhe repassar a escritura. Enquanto Hidelfonso não chegava, Hamilton e Roberto iniciaram um importante diálogo sobre a modernização do serviço público, aspecto visivelmente presente naquele departamento, nas caixas novas e ainda lacradas, contendo um computador de última geração e uma impressora. Possuía scanner também? – perguntou o senhor Hamilton.
– Com certeza, respondeu o secretário municipal (embora não soubesse o que é um scanner, mas por se tratar de uma palavra estrangeira, devia ser um objeto imprescindível).
Para o senhor Roberto, a conversa servia para distrair, passar o tempo, enquanto esperava uma saída para o impasse de não saber onde estava o documento do senhor Hamilton Bandeira. Mas eis que chega o eficiente funcionário público Hidelfonso de Alencar (atrasado? isso não era normal).
– Pronto, o funcionário chegou.
O secretário municipal sentiu-se aliviado, Hidelfonso com certeza saberia do paradeiro da escritura do senhor Hamilton.
– Eu e o senhor Hamilton estávamos esperando por você, Hidelfonso.
– O senhor não providenciou o documento dele ainda não? –perguntou Hidelfonso ao seu superior.
– Não, estava esperando você para me dizer onde está a escritura.
– A escritura do homem aqui?
– Sim.
– Tá na gaveta.
– Não, não está Hidelfonso. Por acaso, você não teria guardado em outro lugar?
– Não, eu guardei nessa gaveta aí que o senhor abriu. Sim, nessa aí.
– Não está.
E, Hidelfonso, com a espontaneidade que lhe era natural:
– Então, se não tá aí é porque João Cambão fumou!
E, o secretário, que ainda tentava manter no Departamento a falsa aparência de modernidade, fingindo desconhecer os hábitos de João Cambão:
– Não, Hidelfonso, você deve estar enganado. João Camboja não faria isso!
– Ele faz!
E, puxando o colchão velho, atrás do armário:
– Olha o colchão dele aqui; é aqui que ele dorme.
Depois disso, diante do silêncio estupefato do senhor Hamilton Bandeira, não se falou mais na modernidade do Departamento. 
Na verdade, não se falou em mais nada.


29/07/2011.

Do livro "Pio XII: ficção & memória", 2019.

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

sexta-feira, 24 de abril de 2020

A idade dos porquês


– Você sabe qual é a idade dos porquês?
– Não. Qual é?
– É a idade em que os filhos descobrem a filosofia... e os pais perdem a paciência.
Júnior estava nessa idade. Perigosa idade. O seu pai não imaginava que um pirralho de apenas quatro anos pudesse desconcertá-lo tanto, a ele, o pai, o maioral daquele lar, o grande sábio da família, fazendo perguntas aparentemente bobas.
– Painho, o que é bigode?
– Bigode? São uns cabelinhos que o homem tem no rosto.
– E a vovó é homem?
– Não. Sua vó é mulher.
– E por que a vovó tem bigode?
– Bom... é porque... não é bigode o que ela tem... são só uns cabelinhos...
– No rosto?
– É.
– E o senhor não disse que uns cabelinhos no rosto é bigode?
O pai não percebera a armadilha em que havia caído e decidiu abandonar o jogo.
– Agora meu filho vai brincar e deixa o papai trabalhar, tá bom?
Júnior sai em disparada, dirigindo um carrinho imaginário. O pai sentiu-se aliviado.
Cinco minutos depois, o infante Sócrates está de volta:
– Painho, porque a barriga da mamãe é grandona?
– A barriga da mamãe não é grandona, está grandona.
– E por quê?
– Porque ela está grávida.
– Por quê?
– Porque... porque... – e o pai procurava no ar as palavras adequadas - o porquê da mamãe estar grávida é que o papai plantou uma sementinha dentro dela e a sementinha foi crescendo, crescendo, e a barriga da mamãe também...
– O senhor plantou uma sementinha na barriga do tio João também?
O pai foi todo sorrisos com a lembrança dos 120 quilos do cunhado e com a brilhante dedução do pequeno.
– Não... O tio João engordou sem sementinha - o pai sorriu em silêncio e pensou em dizer que o tio João era gordo porque comia feito um porco. Mas evitou dar voz a esse pensamento, enxergando suas trágicas consequências.
E Júnior saiu em disparada.
Cinco minutos depois está de volta. Parado. Mudo.
Observando o pai concentrado em cálculos, pois era desses tantos pais que levam para o lar os afazeres profissionais. O pai finge não estar percebendo. Porém, antes que a curiosidade do pequeno interrompa mais uma vez suas ocupações, decide tomar uma atitude.
– Agora o filhinho deixa o papai trabalhar, não faz mais perguntas e vai brincar.
– Por quê?
A calma do pai foi para o espaço: seu tom de voz, mais alto mais o normal, denunciava isso.
– Porque papai tem muito trabalho pra fazer e você não para de fazer perguntas e está atrapalhando o papai!
– Por que o senhor não brinca comigo?
Comovido com a inesperada pergunta, o pai abrandou a ira.
– Agora papai não pode. Papai tem muito trabalho pra fazer. Você faz no lugar de papai?O pequeno só ouvia.
– Você quer trabalhar no meu lugar?
O filósofo precoce respondeu balançando a cabeça, dizendo não. Aí foi a vez do pai:
– Por quê?
– Porque o senhor fica muito nervoso quando trabalha.

Do livro "Pio XII: ficção & memória", 2019.

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

quinta-feira, 23 de abril de 2020

A professora


A professora

Sob as palmeiras, ela ensinava.
Ensinava aos seus irmãos de roça o pouco que sabia. Pouco também era o tempo que aquele grupo de mulheres e crianças dispunha: muito coco pra quebrar.
Nazaré mostrava as letras: como elas se juntavam. De vez em quando premiava seus alunos com sorrisos e elogios, quando estes a premiavam com uma palavra “assuletrada” direitinho...
Comadres e afilhadas de Nazaré... Mulheres do outro lado do rio também vinham. Elas se juntavam, cada uma dava um pouquinho e o de-comer era preparado lá mesmo. Judite dizia que era a hora do recreio. Sorriam. 
Nazaré tinha uma afeição especial por Judite: tinham nascido e crescido no mesmo Buraco Fundo antes de irem parar em Beijuzeiro. Creonice, filha de Judite, era como uma filha para Nazaré; tinha jogado nela água de batismo.
Com o tempo, muitas alunas desandaram, como dizia Nazaré. É que muitas estavam indo para a periferia da cidade, “procurá coisa mió que quebrá coco”. Judite mesmo estava pensando nisso. Antenor, o marido, de vez em quando arranjava serviço na chácara do Dr. Henrique. Já estavam de olho numa casa, de ponta de rua mesmo. E tinha Creonice, que não queria mais saber de quebrar coco, vivia andando pros lados da cidade, tava ficando falada. Judite marejava os olhos lembrando o dia em que Antenor chamara a filha de sem-vergonha e a botara para fora de casa. A menina só tinha 13 anos... Judite se consolava com Nazaré, que dizia que Deus ia dar um jeito.
Nazaré entristecia com as ausências debaixo dos babaçus. Seu João, o marido, dizia Desiste Nazaré, esse povo num quer nada. Mas Nazaré não desistia e se encantava com coisas simples, como ouvir alguma ex-aluna dizer que aprendera com ela a fazer o nome. Então Nazaré chorava, mas era de alegria.
De tristeza ela chorou quando Creonice foi rareando nas aulas até não ir mais. Não andava mais na casa dos pais! Nazaré decidiu, um dia, procurar Creonice nos arrabaldes de uma noite. Ajeitou pra dormir na casa de Maria Boleira, comadre sua que mudara pra cidade faz tempo! E estava bem, o marido era fichado em firma. Tinha televisão das maior, até! 
Quando Nazaré disse que ia pros lados dos bregas, atrás de Creonice, Maria Boleira disse que ela tava maluca, Aquilo lá é lugar pra senhora ir, Comadre! Deixessa menina pra lá, Deus cuida...
Mas Nazaré foi. Meu Deus, quanta inocente nessa vida! As meninas a olhavam com receio. Se negavam a dar informações sobre Creonice, fingindo não conhecê-la, até que uma: 
A senhora é mãe dela? 
Sou como fosse. 
Ali, com aquele caminhoneiro. 
Nazaré se aproximou com valentia nos olhos. Creonice a viu e se desembaraçou rápida dos braços do caminhoneiro encostado no carro e camisa nos ombros.
Os olhos de Nazaré disseram amargas palavras, depois doces. Os olhos de Creonice baixaram, depois se fecharam por segundos.
Saíram juntas. Nazaré falava breve, e baixo. Creonice tinha que deixar aquela vida, estudar, casar, ser mulher de respeito. O silêncio de Creonice gritava vergonhas, ódios, arrependimentos, incompreensões. Tudo isso Nazaré entendia.
Dormiram na casa de Maria Boleira. No outro dia, Judite chorava abraçada com a filha. Nazaré se embelezava, sorrindo calada.
Mas Creonice não demorou em casa. O pai bateu nela quando ela esqueceu de botar água pros animais, dois burros de carroça. De noite, ela fugiu. Judite chorou mais uma vez. Nazaré caminhou.
Seguiu o mesmo itinerário de antes, mas disseram-lhe que Creonice havia se mandado com um caminhoneiro. Nazaré se culpou: se eu tivesse vindo logo, não tivesse deixado passar esses três dias...
Seis meses depois, seu João foi chamar Nazaré na hora da aula.
Que foi, João? 
Deix’as meninaí, vamo lá em casa; vem logo. 
Em casa, Nazaré encontrou Creonice – só os cambitos, magrinha magrinha.
Nazaré conteve o choro. 
Madrinha, eu posso ficar aqui? 
Pode sim, minha filha! 
Nazaré ia cuidar da bichinha. Creonice tirou das costas uma mochila pequena e encardida e, do meio de roupas com cheiro de usadas e guardadas, tirou um caderno velho e amassado. 
Ó, madrinha! 
Diante do caderno e das lembranças das aulas que ele guardava, Nazaré desta vez chorou um choro envelhecidamente novo...

07/04/1999.
Para Ádemas Galvão.

Do livro "Pio XII: ficção & memória", 2019. 

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Histórias exemplares




“Bom, então chegamos ao ponto”, disse o professor. “Os nossos debates sobre juízos de fato e juízos de valor devem inspirar vocês a escreverem contos cuja questão principal deve ser a ética”. Silêncio. Parecia que toda a turma tinha entendido e ponto final. O professor continuou: “Escrevam histórias exemplares”. 
“Como assim?” – a pergunta veio do meio da classe. “Histórias que ensinem algo de bom para as pessoas”, explicou o professor. “Que resgatem os valores que estão se perdendo”, completou. Outro silêncio. “Histórias que deem o exemplo, que mostrem como agir corretamente diante da vida”.
“Pode ser o contrário?”, era a mesma voz da pergunta anterior. “O contrário?”, perguntou o professor, meio perplexo. “Uma história com um exemplo negativo. Assim: uma coisa que as pessoas não devem fazer, um mau exemplo”.
O professor ficou pensativo. Depois de alguns segundos, respondeu: “Pode”.
Aparentemente a turma tinha entendido o trabalho. Uma semana, era o prazo. Dentre todos os alunos, um já tinha ideias em mente – e as perguntas que fizera indicavam isso: era Eduardo, “aluno bom, mas ultimamente anda conversando muito”, assim o avaliavam alguns professores na hora em que esse conto começa.
Eduardo foi para casa pensando na história que tinha em mente, no seu “exemplo negativo”. Não era uma ideia nova. A proposta do professor veio apenas sacudi-la, atiçá-la, apresentar a Eduardo um motivo para que a história saísse do éter de sua inexistência e ganhasse as tintas da ficção.
Naquela semana, Eduardo, que não trabalhava, deixou de lado algumas coisas que habitualmente fazia, como jogar bola, videogame ou ver futebol na TV, enquanto não passasse para o papel a história que fervilhava em sua mente.
Depois de passar a limpo, essa foi a história que mostrou ao professor, um dia antes do término do prazo:

Um mau exemplo
Eduardo Sousa 

A história de Lúcia é uma história triste. Vocês podem me perguntar: mas por que escrever uma história triste assim? E eu respondo: porque ela ensina muita coisa pra gente. 
Mas nem todos irão aprender alguma coisa com ela, eu sei disso, assim como eu sei que não basta ser velho para ser maduro: alguém pode ter 100 anos e não ter aprendido muita coisa sobre a vida.
A história de Lúcia, mesmo triste, me ensinou muito e pode ensinar outras pessoas a viverem melhor, por isso que eu quero compartilhar a história com vocês.
Tudo começou no dia em que Lúcia me disse que ia embora da cidade.
Eu já tinha visto minha amiga triste outras vezes, mas nunca tinha me perguntado a razão. De vez em quando, no meio de uma brincadeira, estavam todos sorrindo e de repente Lúcia parava de rir e ficava melancólica. Isso era comum.
Mas eu só comecei a descobrir a causa da sua melancolia no dia em que ela me disse que ia embora. Eu achei que ela queria sair daqui devido à falta de oportunidades: essa cidade não oferece nada para os jovens, nem emprego, nem cultura, nem lazer. Mas não é por isso, ela me disse.
– E o que é, então? – perguntei.
– A vida, minha vida não presta.
– O que é isso, Lúcia? Não fale assim.
Mas ela continuou falando. E quando eu perguntei o motivo exato de sua vida não prestar, ela me revelou os detalhes que agora eu compartilho com vocês.
Em primeiro lugar, é preciso que eu diga que Lúcia é negra. Nessa história, esse é um detalhe importante. E se sente vítima de preconceito racial. Mas vocês sabem quem age de maneira preconceituosa com ela? A própria avó de Lúcia, dona Antônia, mãe de sua mãe. Lúcia diz que nunca foi amada pela avó.
Inês, mãe de Lúcia, engravidou antes de casar. Engravidou do homem que era seu namorado, Paulo. Casou-se com ele. Mas dona Antônia não queria o casamento. 
Chegou a dizer que preferia ver a filha “jogada” do que casada com Paulo, acreditam?
Mas a mãe de minha amiga Lúcia casou-se com Paulo, pois ela não queria ficar “jogada”, como a velha insensível queria que ela ficasse. Contrariou a mãe e ficou com Paulo, que é negro. 
É preciso que se diga que Inês e dona Antônia, sua mãe, são morenas. Mas o que é uma pessoa morena? É alguém de sangue negro nas veias. Apesar de ter sangue negro, dona Antônia não se acha negra. E, por causa desse pensamento, dona Antônia, discriminava bastante o marido de sua filha. 
Assim, nasceu um relacionamento muito tenso entre a avó de Lúcia e Paulo, o pai de Lúcia. A tensão aumentou principalmente depois que Paulo ficou desempregado. Um dia, ao chegar em casa, Paulo pegou dona Antônia “fazendo a cabeça” de Inês contra ele, mais ou menos culpando Paulo por estar desempregado. Paulo disse coisas nada agradáveis para dona Antônia e a certo momento chamou a velha de “vagabunda”.
Dona Antônia lamenta-se até hoje desse fato. “Até hoje eu não esqueço uma palavra que ele me falou”, disse dona Antônia.
Depois de muitas decepções em sua cidade e muitos conflitos com a sogra, Paulo foi procurar emprego em outra cidade. Inês ficou só, com Lúcia, nenê ainda. E dona Antônia. Que continuava falando de Paulo e se queixando do dia em que a filha tinha conhecido o rapaz.
O ódio que tinha contra Paulo, dona Antônia transferiu para a pequena Lúcia. Foi uma imensa maldade, pois Lúcia era tão criancinha, tão indefesa. Um dos álibis encontrados pela velha para demonstrar tanto ódio contra a neta foi o fato de que Lúcia mijava na cama. O que é natural nas crianças. 
Mas Lúcia continuou mijando até os seis anos e dona Antônia sempre falando, que nunca tinha visto uma menina tão mijona, que Inês tinha que dar um jeito naquilo, que nenhum dos filhos dela, nem dos netos jamais tinha sido assim, etc.
Um dia ela fez uma declaração chocante: que se a neta continuasse mijando na rede, ela iria passar pimenta na vagina de Lúcia! Isso mesmo. Só ameaça, dirão vocês. 
Poderia ter sido só ameaça, mas, infelizmente, ela cumpriu o que disse. Lúcia me contou sobre esse dia, coberta de lágrimas. Da dor que sentiu, acordando no meio da noite e a velha, coincidentemente perto dela, fingindo não saber de nada:
– O que foi, minha filha?
Inês acudiu ao choro de Lúcia e foi direta com a mãe:
– O que foi que a senhora fez com ela?
Dona Antônia disse que não tinha feito nada, mas Inês desconfiou porque Lúcia chorava muito e passava, impaciente, a mão na vagina. Foi Inês quem deduziu o que tinha acontecido, mas a velha nunca admitiu o que tinha feito.
Inês dizia que estava “passando uma chuva” na casa da mãe, mas depois desse dia se apressou para sair e viajar para a cidade onde o marido estava trabalhando e morando. 
Disse mais: que ela e a filha preferiam enfrentar tempestades, até mesmo embaixo de um viaduto, do que passar chuva na casa da mãe.
Viajou e enfrentou a vida junto com Paulo. Mas alguns anos depois o relacionamento deles acabou. Lúcia não quis me dizer o que aconteceu. Inês e Lúcia voltaram para cá. Lúcia era agora uma adolescente. Não foram para casa de dona Antônia, mas para a casa de Lurdes, irmã de Inês. Ficaram lá por um tempo, Inês se reconciliou com a mãe e, pouco depois, Inês estaria de volta à casa de dona Antônia.
Exceto pela separação, parecia tudo em paz. Parecia. Não demorou muito para dona Antônia voltar a falar de Paulo: 
– Um dia ele me lançou uma palavra que eu nunca esqueci!
E completava:
– Aquele nego vagabundo!
Inês e Lúcia tiveram que voltar a conviver com essas lembranças e com o ressentimento sem fim de dona Antônia. Inês terminou por se adaptar à situação.
– Deixa a mãe pra lá, liga não – dizia Inês para Lúcia.
No entanto, Lúcia ligava, pois, quando dona Antônia se referia de forma racista ao seu pai, Lúcia sabia que a avó estava querendo, de fato, era atingir a ela, Lúcia. E conseguia. Lúcia chorava escondida. 
Aguentava humilhações e ficava calada. Inês, como agora passava o dia fora, trabalhando, não ouvia, não sentia nem ¼ do que sobrava para a coitada de Lúcia.
Depois que Inês foi embora, mais uma vez tentar a vida em outro lugar, a situação piorou para Lúcia. Foi quando ela decidiu ir embora também e foi quando ela me contou essa história, que agora eu reconto para vocês.
É uma história triste com um mau exemplo. Aliás, com um péssimo exemplo: uma avó racista, que odeia a neta.
Que todas as coisas tristes que aconteceram na vida de Lúcia nos sirvam de lição para que a gente veja como a família é importante e que o papel dos pais e dos avós é passar muito amor para seus filhos e netos. 
Isso não é pedir demais.
Essa era a história que eu tinha para contar a vocês.

O professor terminou de ler. Eduardo esperava o seu comentário. “Tá bem escrito”, disse o professor. “O senhor gostou?”, quis saber Eduardo. “Gostei. Mas eu acho que tem que mudar algumas coisas”, advertiu o professor. “O quê, por exemplo?”, perguntou Eduardo. “Vamos ver”, disse o professor, voltando para o começo da história.
“Eu acho que você deveria substituir o termo ‘velha’ por outro, menos depreciativo”, sugeriu o professor. “Como o quê?”, perguntou Eduardo. “Não sei... ‘aquela anciã’, talvez...”, propôs o professor. “Aquela anciã?”, estranhou Eduardo. “Mais ou menos... algo desse tipo; ‘velha’ é muito pesado”.
“O quê mais?”, continuou Eduardo.
“Eu acho que você deve tirar a palavra ‘mijando’ e colocar ‘urinando’”, sugeriu o professor. “É mais elegante”, completou. “Sempre que for usar o verbo ‘mijar’ substitua por ‘urinar’, certo?”.
“Ok”, respondeu Eduardo. “Mais alguma coisa?”.
“Só mais uma”, falou o professor. “Eu acho que essa parte que fala que a avó passou pimenta na vagina da neta é muito forte”, argumentou. “Muito forte?”, perguntou Eduardo. “Sim; muito forte”, repetiu o professor. “Muito forte, mas é verdade”, explicou Eduardo. “Eu sei”, disse o professor. “Mas às vezes, pra gente mostrar a verdade é preciso esconder certas verdades”, explicou o professor. “Como assim?”, perguntou Eduardo, confuso. “A avó da sua história está parecendo com a madrasta má dos contos de fada”, disse o professor, sem responder a pergunta anterior. “Não é uma madrasta má, é uma avó má, e a história não é um conto de fadas, infelizmente é tudo verdade, é o exemplo negativo que eu acho que as pessoas não devem seguir”, explicou Eduardo, chateado.
“Não se preocupe; mesmo com esses retoques, o exemplo negativo continua aí. No geral, sua história está muito bem escrita; faça essas pequenas mudanças e eu acredito que será uma das melhores histórias dessa turma. Ok?”, concluiu o professor e entregou as páginas digitadas para Eduardo.
Visivelmente aborrecido, Eduardo saiu sem se despedir. No dia seguinte, não foi à escola.
Jamais entregou a história ao professor, nem a mostrou aos colegas, que continuam sem conhecer a história triste de Lúcia e sua avó racista.

Do livro "Histórias exemplares: para levar no bolso", 2015.

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

terça-feira, 21 de abril de 2020

Desabafo de menino em situação de risco



– Tudo começou quando uns meninos pediram pra eu dizer “como quiabo cru”...
– Dizer o quê?
– “Como quiabo cru”, bem rápido... O senhor já disse?
– Não.
– Eu fui tentar dizer, aí saiu foi outra coisa, isso aí mesmo que o senhor tá pensando, aí eles ficaram só mangando de mim.
– E você?
– Aí eu perdi a cabeça e parti pra cima de um deles, o mais saliente.
– Você bateu nele?
– Dei só uns cascudos nele...
– Eu soube que ele chorou...
– Chorou; ele é um cagão, eu não 
sabia... Só que o padrinho dele é influente na comunidade...
– É?
– É. Um dia desses a polícia foi lá pra pegar ele. Acabaram com uma festa, foi um tiroteio doido, mó bang-bang, a coisa pegou fogo...
– E...
– Recolheram umas armas lá, levaram um, dizendo que era bandido, mas era trabalhador, todo mundo lá sabe disso...
– Pegaram o padrinho do menino?
– Do moleque saliente?
– Sim?
– Pegaram nada, doutor! Ele é vivo! Dizem que ele tem uma fazenda no interior de São Paulo, onde ele se esconde. Ele cria um leão lá...
– Um leão?
– É o que dizem; essa é a conversa que rola na comunidade.
– Depois da história do quiabo e de você ter batido no menino...
– ... saliente! ele é saliente! Se o senhor conhecesse ele, o senhor ia ver como ele é saliente!
– Saliente mas cagão!
– É. – e ele sorriu pela primeira vez.
– E depois, o que você fez?
– Eu fiquei pela rua... Soltei pipa com uns moleques, fiquei admirando um arco-íris, depois fui pra casa.
– E em casa, como foi?
– Cheguei lá, meu padrasto já sabia da história.
– E ele?
– O maior esparro pra cima de mim! Que se eu ‘tivesse estudando, se ‘tivesse preocupado com as mudanças no clima, com o aquecimento global, e tal, eu não tinha me metido em confusão. Se nem os presidente‘tão ligando pra essa história de clima!
– E você?
– Aí eu não quis saber de nada e me fechei no túmulo de Tico e Teco.
– Onde?
– Túmulo de Tico e Teco. É o quarto de minha irmã; quer dizer: meu e dela. Antes era só meu.
– Por que você chama o quarto de túmulo de Tico e Teco?
– É porque mataram o Tico e o Teco lá.
– Eram seus amigos?
– Não, doutor, o Tico e o Teco, o desenho...
– Como assim?
– Lá era o meu quarto, aí, quando minha irmã foi nascer, minha mãe colocou lá na parede o desenho de um hipopótamo feliz e outro do Tico e Teco. Aí um dia veio duas balas perdidas: uma foi bem na cabeça do Tico e a outra bem na cabeça do Teco, o senhor acredita?
– Acredito, claro.
– Aí eu dei o nome de lá de “túmulo de Tico e Teco”. O senhor gostou?
– Muito criativo. Mas, voltando aqui, por que você saiu de casa?
– Eu fiquei na minha, não queria conversar, mas meu padrasto foi lá bater na porta do quarto, aí ficou dizendo que eu tinha que ajudar em casa, que tinha que agradecer o padrasto que tinha, “alguém como você não merece o padrasto bom que tem”, ele teve a coragem de dizer. E eu: “padrasto bom? padrasto bom? Padrasto bom não faz o que você fez com a minha mãe!”.
– O que ele fez com sua mãe?
– Bateu nela... Ele fez uma cicatriz no rosto de minha mãe... Minha mãe era alegre, bonita...
– Onde está sua mãe?
– Ela foi pro interior do Maranhão, com minha irmã. Minha mãe é de lá. Foi visitar a minha vó.
– Ela pensa em voltar pra lá?Nada! Ela diz que se voltar pra lá, o que é que vai fazer? Voltar a quebrar coco? Não... Ela foi só passear... Minha vó, a mãe dela, tá doente...
– Aí você saiu de casa...
– Eu saí, doutor, se não ia ter mais um morto no túmulo de Tico e Teco...
– Depois que saiu de casa, o que você fez?
– Fiquei à toa, por aí...
– Consumiu drogas?
– Consumi não, doutor. Eu não vou negar pro senhor, eu já experimentei, tem as influências, o senhor sabe, mas essa parada não é comigo não.
– Onde você dormiu?
– Num carro muito velho!
– Um carro?
– Um carro, doutor! Encontrei um carro velho, só lataria, já era tarde, eu na maior moleza, aí eu pensei: “é aqui que eu vou dormir”.
– E como foi a noite?
– Foi tranquila, doutor... Antes de dormir eu fiquei conversando com a lua.
– Conversando com a lua?
– É; tinha uma luazona cheia, bonitona, aí eu comecei a papear com ela. Eu perguntei a ela porque é que tem tanta injustiça nesse mundo, doutor... Tantos que não têm nem uma merreca e uns poucos nadando na grana... Toda minha vida eu sempre pensei nisso...
– “Toda minha vida” – você fala como se fosse adulto... Você só tem onze anos...
– É, mas eu já vi muita coisa, doutor... Já vivi muita coisa, que muitos adultos não viveram, doutor...
– Aí você acordou...
– Aí amanheceu, eu fiquei por ali, depois saí pra ver se descolava um café, encontrei uma piriguete que eu conhecia, que tem uma borboleta tatuada nas costas, vinha da noite, a mina me acompanhou, até que ela é gente boa, mas conversa mais que um papagaio, aí foi quando vocês me encontraram...
– Você sabe que nós estamos aqui para lhe proteger...
– Sei...
– Há muito tempo que você não vai pra escola.
– ...
– Quais são seus sonhos? O que você espera da vida?
– Eu queria ser dono de uma ilha! – e ele sorriu pela segunda vez.
– Uma ilha?
– É. Uma ilha habitada só por gente de coração bom...
– O que mais?
– ... Queria que a vida fosse feita só de paz, felicidade, alegria, prosperidade...

Do livro "Histórias exemplares: para levar no bolso", 2015. 

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

História de um "erro"


Eu tinha acabado de sair da infância, mas ainda brincava de boneca (nessa época, as meninas ainda brincavam de boneca). Aí então ele apareceu e as coisas estranhas que eu passei a sentir por ele – dei o nome de amor.
Ele foi meu primeiro namorado; e eu, sua primeira namorada. Adorava quando ele sorria, sentia sinceridade em suas palavras. Era tão amável e encantador...
Nos encontrávamos lá em casa; detalhe: só depois que mamãe saía para o trabalho. Esse foi o nosso erro.
Quando eu falei “estou grávida”, ele disparou numa gargalhada. Meia hora depois (brincadeirinha: foram no máximo cinco minutos; mas, para mim aquela gargalhada incrédula durava uma eternidade) eu lhe contei os detalhes. Ele não disse mais nada e saiu.
E então, o que eu achava que era amor, apagou-se friamente. Não; ele não assumiu nosso filho. As desculpas: sua mãe não aceitava aquela situação, ele já estava com viagem marcada para Minas, bla bla bla, bla bla bla...
“Cachorro” foi a palavra mais educada que dirigi a ele...
Depois do nascimento do nosso filho, passei exclusivamente a me dedicar a ele, um bebê que nasceu como os pais sempre sonham: saudável e bonito.
Foram anos difíceis: uma criança cuidando de outra criança, diziam as pessoas. E, mesmo com a ajuda de minha mãe, de vez em quando ela me lembrava o “erro” que eu tinha cometido e eu sempre ficava calada.
Mas, um dia, quando de novo ela me passou na cara o meu “erro”, eu argumentei que ela, minha mãe, a pessoa de quem eu mais dependia e mais confiava, jamais tinha me ensinado nada sobre sexo, relações sexuais, e, principalmente, métodos anticoncepcionais. Ela reagiu de uma maneira tão dramática que vocês nem imaginam: que ninguém sabia o que ela tinha passado, que ninguém sabe o que é ser mãe, viúva (meu pai morreu quando eu tinha cinco anos) e ter 
que trabalhar pra não depender de ninguém etc. etc.
Claro que esse discurso terminou em choro. Tive que dizer em alto e bom som: “Ok! Já não está mais aqui quem falou!”.
Fui levando a vida, cuidando do meu filho e vez por outra ouvindo as pessoas comentarem entre si: “ela é uma menina triste, né?”.
Voltei aos estudos, amadureci e saí de Andirobal (na época, as empresas de ônibus ainda insistiam em chamar Pio XII de Andirobal). 
Fui pra São Luís morar com minha tia. Continuo morando na “ilha do amor”, mas, para mim, o amor ainda é um mistério. Contudo, isso não me impede de levar a vida com bom humor (dando um desconto, claro, para os dias de tpm e para aqueles em que a gente descobre que tem gente querendo sacanear com a gente).
Hoje mesmo, quando parei o carro na Litorânea, uma amiga me chamou e perguntou quem era o gato que estava comigo. E eu: “acabei de conhecer”. Para deixar minha amiga babando, fui até o carro e saí abraçada com o gato.
O gato me confidenciou no ouvido: “a senhora não tem jeito; quando é que vai parar com essas brincadeiras, hein mamãe?”.
Sorrimos juntos e fomos curtir a praia.

Do livro "Histórias exemplares: para levar no bolso", 2015. 

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com.