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terça-feira, 21 de abril de 2020

Desabafo de menino em situação de risco



– Tudo começou quando uns meninos pediram pra eu dizer “como quiabo cru”...
– Dizer o quê?
– “Como quiabo cru”, bem rápido... O senhor já disse?
– Não.
– Eu fui tentar dizer, aí saiu foi outra coisa, isso aí mesmo que o senhor tá pensando, aí eles ficaram só mangando de mim.
– E você?
– Aí eu perdi a cabeça e parti pra cima de um deles, o mais saliente.
– Você bateu nele?
– Dei só uns cascudos nele...
– Eu soube que ele chorou...
– Chorou; ele é um cagão, eu não 
sabia... Só que o padrinho dele é influente na comunidade...
– É?
– É. Um dia desses a polícia foi lá pra pegar ele. Acabaram com uma festa, foi um tiroteio doido, mó bang-bang, a coisa pegou fogo...
– E...
– Recolheram umas armas lá, levaram um, dizendo que era bandido, mas era trabalhador, todo mundo lá sabe disso...
– Pegaram o padrinho do menino?
– Do moleque saliente?
– Sim?
– Pegaram nada, doutor! Ele é vivo! Dizem que ele tem uma fazenda no interior de São Paulo, onde ele se esconde. Ele cria um leão lá...
– Um leão?
– É o que dizem; essa é a conversa que rola na comunidade.
– Depois da história do quiabo e de você ter batido no menino...
– ... saliente! ele é saliente! Se o senhor conhecesse ele, o senhor ia ver como ele é saliente!
– Saliente mas cagão!
– É. – e ele sorriu pela primeira vez.
– E depois, o que você fez?
– Eu fiquei pela rua... Soltei pipa com uns moleques, fiquei admirando um arco-íris, depois fui pra casa.
– E em casa, como foi?
– Cheguei lá, meu padrasto já sabia da história.
– E ele?
– O maior esparro pra cima de mim! Que se eu ‘tivesse estudando, se ‘tivesse preocupado com as mudanças no clima, com o aquecimento global, e tal, eu não tinha me metido em confusão. Se nem os presidente‘tão ligando pra essa história de clima!
– E você?
– Aí eu não quis saber de nada e me fechei no túmulo de Tico e Teco.
– Onde?
– Túmulo de Tico e Teco. É o quarto de minha irmã; quer dizer: meu e dela. Antes era só meu.
– Por que você chama o quarto de túmulo de Tico e Teco?
– É porque mataram o Tico e o Teco lá.
– Eram seus amigos?
– Não, doutor, o Tico e o Teco, o desenho...
– Como assim?
– Lá era o meu quarto, aí, quando minha irmã foi nascer, minha mãe colocou lá na parede o desenho de um hipopótamo feliz e outro do Tico e Teco. Aí um dia veio duas balas perdidas: uma foi bem na cabeça do Tico e a outra bem na cabeça do Teco, o senhor acredita?
– Acredito, claro.
– Aí eu dei o nome de lá de “túmulo de Tico e Teco”. O senhor gostou?
– Muito criativo. Mas, voltando aqui, por que você saiu de casa?
– Eu fiquei na minha, não queria conversar, mas meu padrasto foi lá bater na porta do quarto, aí ficou dizendo que eu tinha que ajudar em casa, que tinha que agradecer o padrasto que tinha, “alguém como você não merece o padrasto bom que tem”, ele teve a coragem de dizer. E eu: “padrasto bom? padrasto bom? Padrasto bom não faz o que você fez com a minha mãe!”.
– O que ele fez com sua mãe?
– Bateu nela... Ele fez uma cicatriz no rosto de minha mãe... Minha mãe era alegre, bonita...
– Onde está sua mãe?
– Ela foi pro interior do Maranhão, com minha irmã. Minha mãe é de lá. Foi visitar a minha vó.
– Ela pensa em voltar pra lá?Nada! Ela diz que se voltar pra lá, o que é que vai fazer? Voltar a quebrar coco? Não... Ela foi só passear... Minha vó, a mãe dela, tá doente...
– Aí você saiu de casa...
– Eu saí, doutor, se não ia ter mais um morto no túmulo de Tico e Teco...
– Depois que saiu de casa, o que você fez?
– Fiquei à toa, por aí...
– Consumiu drogas?
– Consumi não, doutor. Eu não vou negar pro senhor, eu já experimentei, tem as influências, o senhor sabe, mas essa parada não é comigo não.
– Onde você dormiu?
– Num carro muito velho!
– Um carro?
– Um carro, doutor! Encontrei um carro velho, só lataria, já era tarde, eu na maior moleza, aí eu pensei: “é aqui que eu vou dormir”.
– E como foi a noite?
– Foi tranquila, doutor... Antes de dormir eu fiquei conversando com a lua.
– Conversando com a lua?
– É; tinha uma luazona cheia, bonitona, aí eu comecei a papear com ela. Eu perguntei a ela porque é que tem tanta injustiça nesse mundo, doutor... Tantos que não têm nem uma merreca e uns poucos nadando na grana... Toda minha vida eu sempre pensei nisso...
– “Toda minha vida” – você fala como se fosse adulto... Você só tem onze anos...
– É, mas eu já vi muita coisa, doutor... Já vivi muita coisa, que muitos adultos não viveram, doutor...
– Aí você acordou...
– Aí amanheceu, eu fiquei por ali, depois saí pra ver se descolava um café, encontrei uma piriguete que eu conhecia, que tem uma borboleta tatuada nas costas, vinha da noite, a mina me acompanhou, até que ela é gente boa, mas conversa mais que um papagaio, aí foi quando vocês me encontraram...
– Você sabe que nós estamos aqui para lhe proteger...
– Sei...
– Há muito tempo que você não vai pra escola.
– ...
– Quais são seus sonhos? O que você espera da vida?
– Eu queria ser dono de uma ilha! – e ele sorriu pela segunda vez.
– Uma ilha?
– É. Uma ilha habitada só por gente de coração bom...
– O que mais?
– ... Queria que a vida fosse feita só de paz, felicidade, alegria, prosperidade...

Do livro "Histórias exemplares: para levar no bolso", 2015. 

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

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