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segunda-feira, 13 de abril de 2020

De romances e não-romances




Lúcia voltava para casa quando, perto dela, uma mulher saiu correndo, de dentro de um carro. 
Coincidindo com a abertura do tanque de gasolina do carro, havia um adesivo com a fotomontagem da presidenta Dilma com as pernas abertas. Lúcia observava o adesivo quando, então, a mulher se colocou atrás dela, como se a frágil garota fosse um eficiente escudo. A mulher, de camisola, com uma alça rompida, colocava uma das mãos ao peito, para não ficar à mostra. Pedia socorro e chorava muito. 
“Me ajude, minha filha, ele quer me matar!”, e apontou para um homem que saiu lentamente do carro com uma faca na mão, a qual jogou, calmamente, sobre o banco do motorista. 
Lúcia gritou para alguns homens que estavam por ali, mas pareciam ausentes:
“Ei! Ajuda aqui! Aquele homem ali quer matar essa mulher!”, quando Lúcia apontou para o homem, ele entrou no carro e saiu. 
Dois homens se aproximaram e, cada um de um lado, ajudaram a mulher a chegar até uma bodega que estava aberta. 
“Vou ligar pra polícia”, disse um dos homens. 
A mulher arfava. Olhou para Lúcia e agradeceu:
“Obrigado, minha filha.”
“De nada.”
Lúcia realmente tinha idade para ser filha da mulher, que aparentava ter uns 40 anos. Lúcia tinha apenas 17. Quando o carro da polícia chegou, Lúcia se despediu da mulher, que bebia um copo de água com açúcar. Com um olhar triste, a mulher acenou para Lúcia. 
Ao chegar em casa, Lúcia contou a história para a mãe. 
“Minha nossa!”, disse a mãe. E ligou para o pai, relatando o acontecido.
“Mãe!”, sussurrou Lúcia para a mãe, gesticulando. A mãe afastou o celular do rosto. “Mãe”, repetiu Lúcia, “deixa o papai chegar em casa, aí a senhora conta a história com calma”. 
“Tá bom”, concordou a mãe. 
“Meu amor, depois eu termino, aqui em casa a própria Lúcia vai narrar em detalhes. Tá, tchau”, e desligou o celular. 
Lúcia, porém, ao chegar na cozinha, mal tinha bebido água, já estava ligando para Henrique, seu colega de classe. Contou tudo, tim-tim por tim-tim. 
“A Super-Lúcia”, ironizou Henrique. 
“Super-Lúcia nada, saliente, eu fiz o que qualquer pessoa deveria fazer.”
“Não sei se eu ia ter coragem”, confessou Henrique. “Sem falar que essa questão é complicada; a mulher tem um romance com o cara etc. e tal, mas ninguém sabe o que ela aprontou pra o cara perder a cabeça assim.”
A palavra “romance”, saída, na bucha, da boca de Henrique, deixou Lúcia duplamente decepcionada, por: 1) não a considerar apropriada para a situação, pois, romance, para ela, representava uma união realmente amorosa, sem qualquer sombra de violência; 2) por Henrique empregar a palavra num contexto que justificava a violência masculina diante da suposta traição feminina. E, sem dúvida, terminava tentando justificar a violência do covarde. 
“Covardão!"
“Como é?”, Henrique se assustou com a palavra, que Lúcia falou sem esconder sua raiva. “Eu, covardão?”
“Tu não, menino, o cara que tentou matar a mulher!”
Lúcia reprovou a “análise” do colega: “Henrique, isso é papo furado, não tem justificativa: quem ama não mata.”
“Espera aí, deixa eu explicar...”
“Nem precisa; desculpa ter falado contigo hoje”, Lúcia desligou o celular sem nem dizer tchau. “Menina doida”, pensou Henrique, “liga pra gente, não deixa nem a gente explicar as coisas e vai logo desligando”. 
Lúcia estava bastante chateada. Ligou a televisão e começou a mudar de canal. Desligou, subitamente. 
“Romance!”
Não sabia explicar, mas a palavra romance estabelecia em sua mente uma conexão com o livro “Memórias de um sargento de milícias”, romance singular, narrativa romântica de um romance temperado com humor e naturalidade. Assim, levantou-se e foi à pequena estante que ficava no quarto dos pais. 
Procurou o livro. Achou. Abriu. Lembrou da análise escolar da obra. Do trabalho em grupo realizado. Sorriu. Boas lembranças. 
Devolveu o livro à estante. Sua atenção foi atraída para outro livro, intitulado “Amar, verbo intransitivo”. Lúcia não conhecia o romance de Mário de Andrade que tem esse nome. Logo, sequer imaginou que o livro na estante dos pais poderia ser a obra do autor de “Macunaíma”. Mas não era. 
O que Lúcia tinha em mãos era um livro de autoria de uma certa Isadora Jordão. 
“Putz! Autoajuda? Quem? Papai ou mamãe? Ou os dois?”
Na página que abriu, encontrou lugares-comuns como esses: “Amar deve ser, reciprocamente, encontro e dispersão um no outro; não um sistema de recompensas distintas.” “Amas ou pensas que amas? Se amas, achas que tens tempo para duvidar do teu amor?”
Entre as páginas 68 e 69 do livro encontrou um pequeno pedaço de papel com um texto manuscrito. Imediatamente reconheceu a letra do pai:
Pele negra, sem marcas 
Em que castelo vivestes 
Negra rainha dos meus sonhos? 
Boca pequena, nariz africano, 
Seios médios (minhas ansiosas mãos 
Mal esperam para ser
Teu efêmero sutiã). 
Lúcia parou a leitura, envergonhada. A descrição contida no texto correspondia a características físicas similares às de sua mãe, tratava-se, portanto, de um poema (erótico até o fim?) que o pai escrevera para a mãe, deduziu Lúcia. Se sentiu como se estivesse invadindo a intimidade dos dois. 
Foi para a abertura do livro, pois sabia que tanto o pai como a mãe colocavam assinatura e data nas primeiras páginas dos seus livros. Naquele, no entanto, não havia data nem assinatura; nada que indicasse a idade da obra ou a quem pertencia. 
Ah, como era linda a união dos seus pais, esse, sim, um verdadeiro romance. 
“Lúcia, que garota de sorte você é!”, disse, sorrindo. Se colocando do lado oposto, falou como se fosse outra pessoa: “Ah, Lúcia, você tem sorte porque seus pais se amam etc. e tal; e você, será que vai ter a mesma sorte no amor?”
Voltou ao lugar de antes – e voltou a ser Lúcia: “Sei lá... É tão difícil... O Henrique, por exemplo, eu quero sentir alguma coisa por ele, mas o menino é um idiota de um machista! Pelo menos, foi o que ele pareceu ser na última vez que a gente conversou.”
Mudou de lado de novo e voltou a ser o interlocutor imaginário: “Ah, Lúcia, você não sabe nada da vida ainda, ou sabe?”
E, voltando a ser Lúcia: “Tô aprendendo.”
Se jogou na cama e riu de si mesma. 
Quando o pai chegou, a mãe a chamou para contar a quase-tragédia que de manhã presenciara. 
O pai se orgulhava de Lúcia, mas achou que ela correra perigo. 
“Eu ia fazer o quê, pai? O carro parou na minha frente!”
“Deixa pra lá, assim foi e pronto; vamos comer”, resumiu a mãe, diplomata. 
No dia seguinte, Lúcia ignorou Henrique na escola, mesmo quando ele chegou, humilde, e anunciou que ela, Lúcia, fora escolhida a “beleza negra”, a garota que representaria a escola na semana da consciência negra. Embora Henrique não soubesse, estava dando a notícia em primeira mão, até então Lúcia nada sabia da escolha. Reagiu com frieza quando Henrique lhe deu os parabéns. 
“Obrigada.”
Decidira: não queria ser a beleza negra. Admiravam-na pelo seu corpo ou por sua alma? Por seu corpalma, sua almacorpo? Era difícil ser uma garota negra. 
À noite, Lúcia se aproximou dos pais, que estavam sentados diante da TV assistindo ao programa policial. 
“Papai, nem tanto, mas a mamãe não perde um dia”, pensava Lúcia, se referindo ao programa, enquanto os observava por trás do sofá. 
Lúcia se sentou ao lado deles, sutilmente. Foi o pai quem percebeu primeiro, pois a mãe estava muito envolvida com a televisão. 
“O que foi, Lúcia? Quer dizer alguma coisa pra gente?”, perguntou o pai, perspicaz. 
“É, mas só quando mamãe baixar o volume, ou melhor, quando ela se desligar da TV.”
A mãe tinha os olhos fixos no programa policial, que passava uma matéria sobre um grupo de mendigos que havia meses estavam dormindo no pátio da igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, “causando grande incômodo à população”, segundo um padre ouvido pela reportagem. 
“Eu conheço esse homem”, disse a mãe de Lúcia, apontando para um dos mendigos que aparecia no vídeo. “Ele costuma pedir ajuda nos ônibus.”
“Mamãe!”
“Oi, filha”, respondeu finalmente a mãe de Lúcia, despregando os olhos da TV. “O que foi, Lúcia?”
“É que a escola começou a organizar a semana da consciência negra e eu fui escolhida a beleza negra da escola.”
“Opa!“, disse o pai, bem humorado. “Eh pai sortudo sou eu; pai da aluna mais bonita da escola.”
“Negra!“
“O quê?”, perguntou o pai. 
“Negra”, enfatizou Lúcia. “A mais bonita aluna negra.”
“Pra mim é a mais bonita aluna de todas e pronto!“, insistiu o pai. 
“Pra mim também”, a mãe foi falando assim e abraçando Lúcia. “Parabéns, filha.”
Lúcia se deixou abraçar um pouco pelo pai e pela mãe e depois completou:
“Mas eu vou recusar.”
“O quê?”, quase-gritou a mãe. “Por quê, filha?”, perguntou, abalada, a mãe. 
“Porque... Sei lá... Eu não gosto de toda aquela gente olhando pra mim, como se eu fosse...”
“Como se fosse o quê, Lúcia? Eles olham pra você como uma menina negra, linda, que você é. Filha, vou te dizer uma coisa... Sei não...”, interrompeu a mãe, sem completar o pensamento. 
“O quê, mãe?”
“Lúcia, eu entendo o que sua mãe quer dizer. Preconceito. Você tem que valorizar a oportunidade. Você é a mais bonita da sua escola. Mas, pra mim, a mulher mais bonita do mundo é essa aqui”, o pai abraçou a mãe. “Mas, você sabe quantas vezes ela foi escolhida a beleza negra da escola dela?"
Lúcia balançou a cabeça, em sinal negativo. 
“Nunca”, continuou o pai. “Você sabe as coisas que ela já passou?”
“Não. Ela não me diz!”, respondeu Lúcia, desafiadora. 
“Ela passou por coisas que não merecem ser lembradas”, explicou o pai. “Ela e eu”, corrigiu, “mas ela mais ainda que eu, por ser mulher”.
“Pense melhor, Lúcia; aceite”, pediu a mãe, com muita calma. 
Contudo, Lúcia não pôde pensar muito no assunto, pois, no meio da conversa, ela viu um rosto conhecido na TV: era a mulher do dia anterior. A legenda do programa policial dizia: “Mulher assassinada a facadas pelo marido”.
Lúcia apontou para a TV, trêmula: “A mulher... A mulher...” E desabou no ombro do pai a chorar. 
“Meu Deus! Um dia depois... Ninguém faz nada!”, disse a mãe.
Lúcia estava inconsolável. Por que os homens não amavam as mulheres como o seu pai amava sua mãe e vice-versa? 
O pai e a mãe abraçaram a filha, protetores, enquanto a TV continuava exibindo a foto da mulher assassinada, a mulher salva por Lúcia na véspera, uma mulher negra, como Lúcia e sua mãe. 


No dia seguinte, sábado, Lúcia acordou quase ao meio-dia.
A mãe estava na máquina de costura.
“Bom dia, minha filha.”
“Bom dia, mãe... A senhora costura a minha roupa?”
“Costuro, sim”, respondeu a mãe. E, depois, se tocando de que não sabia de que vestido a filha falava. “Mas, qual é o vestido?”
“O vestido pra eu ir receber o prêmio da Beleza Negra, na escola."
A mãe se levantou, meio em câmera lenta, e foi abraçando a filha: “Oh meu Deus...”

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

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