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quinta-feira, 2 de abril de 2020

"Fique em casa que eu te dou um conto": Dona Lurdes voltou mais bonita


Já está com cinco anos que Dona Lurdes tomara a decisão de voltar aos estudos. Aos 52 de idade, dona de casa, mãe de três filhos adolescentes, descobriria, sem demora, que aquela não era uma decisão fácil. 
Sotim, seu esposo, foi o primeiro a reclamar.
“Lurdinha, tu acha que dá certo esse negócio? E as coisas aqui, quem vai fazer?”
“Eu. Mas todo mundo aqui vai me ajudar!", enfatizou, resoluta.
E foi logo imaginando a forma como cada um colaboraria para que ela pegasse o ônibus escolar às 11 da manhã, no São Francisco, o pequeno povoado de dez casinhas em que morava, já deixando o almoço pronto e a casa organizada. 
“Só se for assim, porque eu passo o dia na roça”, se justificou­ o senhor Abimário da Silva Peixoto, Peixotim, era como Dona Lurdes chamava o esposo, Sotim para os demais. 
E foi assim, acordando às cinco da manhã, fazendo aritmética das horas ao longo de todo o dia e solicitando compreensão dos filhos e do marido, que Dona Lurdes concluiu o ensino fundamental e ingressou no ensino médio. 
Fizeram medo a ela.
“Dona Lurdes, o ensino médio é difícil. Será se  a senhora vai acompanhar?” 
“O fundamental pra mim também era difícil e eu não acompanhei?”, respondia, otimista. 
Acompanhou. Sempre estudando em turmas com alunos que tinham idade de serem seus filhos. 
Confiante, cursava o primeiro ano do ensino médio, se destacando como aluna dedicada. 
Começaram os jogos escolares e lá estava Dona Lurdes, como torcedora entusiasmada do time da sua escola, que vencia o time adversário. 
Um garoto, com a idade de ser seu filho, pisou no pé de Dona Lurdes, a qual, lógico, reclamou imediatamente: 
“Tá doido?! Tá me vendo aqui não?”  
“Por que a senhora não se manca? O que é que uma velha como a senhora quer aqui no meio dos jovens?", disse o insensato individuozinho. 
Dona Lurdes não teve palavras, ouviu a ofensa sem dar qualquer resposta. Não era apenas a arrogância, não era apenas um único preconceito, contra uma pessoa mais velha, ela sabia disso, mas era também por ela ser negra, ser uma pessoa simples, ter origem humilde. 
E ela, que tinha sido forte ao longo desses cinco anos, se sentiu fraca, silenciou, e, triste, pegou o ônibus de volta para casa. Nada falou durante o trajeto, exceto por estas palavras:  
“Vou desistir.” 
“De quê, Dona Lurdes?”
“Da escola.”
Na semana seguinte cumpriu o que disse: não foi à escola um dia sequer. 
Na aula de inglês, o professor sentiu sua falta, sentiu falta dos seus "excuses". 
“Galera, cadê Dona Lurdes?” 
Indignada, a turma explicou o acontecido,
contagiando também o professor com uma justa indignação. Então, veio a ideia: escrever uma carta, dizendo o quanto todos os seus colegas de turma se solidarizavam com ela e pediam o seu retorno à escola. 
O professor escreveu a carta, assinada por todos os alunos e pelo diretor da escola. 
O carteiro foi o líder da turma, que pegou sua moto e foi até o distante São Francisco, parou na quinta casa do povoado e entregou a carta nas mãos da própria destinatária. 
No mesmo instante Dona Lurdes abriu a
carta, que, entre outras, continha as seguintes palavras:
“Dona Lurdes, pessoas preconceituosas, em um ou outro momento, sempre cruzarão o nosso caminho. 
Indivíduos desse tipo ‘servem’ para nos fortalecer diante dos obstáculos da vida, portanto, não desista dos seus sonhos, de sua luta diária pelo direito à educação. 
Esperamos pela senhora em nossa turma,
em nossa escola, que já não é a mesma sem a sua alegria e seu exemplo".
Prometeu voltar à escola. Estava visivelmente emocionada. No dia do seu retorno, a turma comprou bolos, salgados e refrigerantes. Realizaram uma linda recepção. Dona Lurdes pediu a palavra:
“Ninguém, mas ninguém mesmo, vai me impedir de realizar o meu sonho de terminar o ensino médio."
A turma vibrou, com longos aplausos e assobios. 
“Dona Lurdes voltou mais bonita”, comentou alguém.


Imagem de domínio público, disponível em: pixabay.com. 

Um comentário:

Unknown disse...

Parabéns, Professor Gilcênio, meu esposo amado. A personagem Dona Lurdes é um exemplo de vida e resistência na busca da realização dos seus sonhos e teve como motivares, o professor, o diretor e os(as) colegas de turma, uma linda ação. Um belo conto. Beijão. 👋👋👋