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terça-feira, 7 de abril de 2020

A espera


Segurava com cuidado o envelope amarelo quando passou em frente ao “Mercadinho Popular”, mas não entrou. 
Olhou para lá com curiosidade, diminuiu o passo. Viu, na pracinha, a banca de revistas. Se aproximou e parou, olhando as manchetes dos jornais. O dono da banca o encarou com desconfiança. Olhou para os lados, sem graça. 
Sentados num banco, dois homens conversavam sobre a licitação que a governadora ia fazer para o palácio de governo: gastos de mais de um milhão com lagostas, camarões, bacalhau, sorvetes (“oito tipos de sorvete”, enfatizou o senhor careca; “e bacalhau do Porto, completou o senhor gorducho), além de bombons, biscoitos champanhe e 2.500 litros de refrigerante. 
Um milhão. “Caralho!”, pensou, “um milhão! E essa galera toda aqui – abandonada”.
Lembrou dos acontecimentos recentes, as decapitações no presídio, conhecia dois dos decapitados, lamentava, pois tinham entrado no crime quase que por acaso. Lembrava o dia e o momento: “eles nem iam pr’aquela festa, tavam de bobeira quando decidiram ir, eu tava com eles”. 
Já fora pego com maconha. “Nem com a porra que eu vou pr'aquele inferno”. Precisava, portanto, tomar cuidado com os gestos, com o movimento, até com a maneira como olhava para as pessoas. 
Encarou o envelope. “Firmeza na mão”, ordenou ao cérebro. Os dois homens continuavam conversando. Também comentavam as mortes no presídio e os ataques a ônibus por toda a cidade. 
“Um milhão! Roubo do caralho! E os mano se fudendo à toazinha”, se revoltava, no seu íntimo. 
Voltou a passear os olhos pelas publicações penduradas na banca de revistas. O dono da banca emitiu um grunhido, que nada significava, exceto, talvez, por querer dizer que não estava dormindo. Saiu.
Voltou. O “Mercadinho Popular” continuava lá, claro. “Mercadinho? A porra ocupa metade do quarteirão e o cara dá o nome de mercadinho”, questionou. 
Se aproximou, parou bem à frente, olhou de soslaio. Um rapaz um pouco mais velho que ele, negro como ele, o olhou com desconfiança. “Segurança”, conhecia um segurança de longe, tinha faro para esse tipo de profissão, se vangloriou. 
Olhava o envelope, como se lesse alguma coisa nele, mas não havia nada escrito. Um homem saiu do mercadinho, vinha em sua direção. Já não era tão jovem. Tinha idade de ser seu pai? Tinha. 
"Ei rapaz, tá fazendo o quê, aí parado?" 
Ficaram cara a cara. “O que foi eu disse?” Por que não respondia a pergunta do homem? 
“Eu disse que quando chegasse, me procurasse. Trouxe o currículo?”
“Trouxe.”
Entregou o envelope ao homem. 
“Vamo lá”, disse o homem, sorrindo. “Relaxa, vai dar tudo certo.”
Acompanhou o homem. Sorriu. Estava feliz. Entraram juntos no mercadinho. 

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com.

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