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quarta-feira, 22 de abril de 2020

Histórias exemplares




“Bom, então chegamos ao ponto”, disse o professor. “Os nossos debates sobre juízos de fato e juízos de valor devem inspirar vocês a escreverem contos cuja questão principal deve ser a ética”. Silêncio. Parecia que toda a turma tinha entendido e ponto final. O professor continuou: “Escrevam histórias exemplares”. 
“Como assim?” – a pergunta veio do meio da classe. “Histórias que ensinem algo de bom para as pessoas”, explicou o professor. “Que resgatem os valores que estão se perdendo”, completou. Outro silêncio. “Histórias que deem o exemplo, que mostrem como agir corretamente diante da vida”.
“Pode ser o contrário?”, era a mesma voz da pergunta anterior. “O contrário?”, perguntou o professor, meio perplexo. “Uma história com um exemplo negativo. Assim: uma coisa que as pessoas não devem fazer, um mau exemplo”.
O professor ficou pensativo. Depois de alguns segundos, respondeu: “Pode”.
Aparentemente a turma tinha entendido o trabalho. Uma semana, era o prazo. Dentre todos os alunos, um já tinha ideias em mente – e as perguntas que fizera indicavam isso: era Eduardo, “aluno bom, mas ultimamente anda conversando muito”, assim o avaliavam alguns professores na hora em que esse conto começa.
Eduardo foi para casa pensando na história que tinha em mente, no seu “exemplo negativo”. Não era uma ideia nova. A proposta do professor veio apenas sacudi-la, atiçá-la, apresentar a Eduardo um motivo para que a história saísse do éter de sua inexistência e ganhasse as tintas da ficção.
Naquela semana, Eduardo, que não trabalhava, deixou de lado algumas coisas que habitualmente fazia, como jogar bola, videogame ou ver futebol na TV, enquanto não passasse para o papel a história que fervilhava em sua mente.
Depois de passar a limpo, essa foi a história que mostrou ao professor, um dia antes do término do prazo:

Um mau exemplo
Eduardo Sousa 

A história de Lúcia é uma história triste. Vocês podem me perguntar: mas por que escrever uma história triste assim? E eu respondo: porque ela ensina muita coisa pra gente. 
Mas nem todos irão aprender alguma coisa com ela, eu sei disso, assim como eu sei que não basta ser velho para ser maduro: alguém pode ter 100 anos e não ter aprendido muita coisa sobre a vida.
A história de Lúcia, mesmo triste, me ensinou muito e pode ensinar outras pessoas a viverem melhor, por isso que eu quero compartilhar a história com vocês.
Tudo começou no dia em que Lúcia me disse que ia embora da cidade.
Eu já tinha visto minha amiga triste outras vezes, mas nunca tinha me perguntado a razão. De vez em quando, no meio de uma brincadeira, estavam todos sorrindo e de repente Lúcia parava de rir e ficava melancólica. Isso era comum.
Mas eu só comecei a descobrir a causa da sua melancolia no dia em que ela me disse que ia embora. Eu achei que ela queria sair daqui devido à falta de oportunidades: essa cidade não oferece nada para os jovens, nem emprego, nem cultura, nem lazer. Mas não é por isso, ela me disse.
– E o que é, então? – perguntei.
– A vida, minha vida não presta.
– O que é isso, Lúcia? Não fale assim.
Mas ela continuou falando. E quando eu perguntei o motivo exato de sua vida não prestar, ela me revelou os detalhes que agora eu compartilho com vocês.
Em primeiro lugar, é preciso que eu diga que Lúcia é negra. Nessa história, esse é um detalhe importante. E se sente vítima de preconceito racial. Mas vocês sabem quem age de maneira preconceituosa com ela? A própria avó de Lúcia, dona Antônia, mãe de sua mãe. Lúcia diz que nunca foi amada pela avó.
Inês, mãe de Lúcia, engravidou antes de casar. Engravidou do homem que era seu namorado, Paulo. Casou-se com ele. Mas dona Antônia não queria o casamento. 
Chegou a dizer que preferia ver a filha “jogada” do que casada com Paulo, acreditam?
Mas a mãe de minha amiga Lúcia casou-se com Paulo, pois ela não queria ficar “jogada”, como a velha insensível queria que ela ficasse. Contrariou a mãe e ficou com Paulo, que é negro. 
É preciso que se diga que Inês e dona Antônia, sua mãe, são morenas. Mas o que é uma pessoa morena? É alguém de sangue negro nas veias. Apesar de ter sangue negro, dona Antônia não se acha negra. E, por causa desse pensamento, dona Antônia, discriminava bastante o marido de sua filha. 
Assim, nasceu um relacionamento muito tenso entre a avó de Lúcia e Paulo, o pai de Lúcia. A tensão aumentou principalmente depois que Paulo ficou desempregado. Um dia, ao chegar em casa, Paulo pegou dona Antônia “fazendo a cabeça” de Inês contra ele, mais ou menos culpando Paulo por estar desempregado. Paulo disse coisas nada agradáveis para dona Antônia e a certo momento chamou a velha de “vagabunda”.
Dona Antônia lamenta-se até hoje desse fato. “Até hoje eu não esqueço uma palavra que ele me falou”, disse dona Antônia.
Depois de muitas decepções em sua cidade e muitos conflitos com a sogra, Paulo foi procurar emprego em outra cidade. Inês ficou só, com Lúcia, nenê ainda. E dona Antônia. Que continuava falando de Paulo e se queixando do dia em que a filha tinha conhecido o rapaz.
O ódio que tinha contra Paulo, dona Antônia transferiu para a pequena Lúcia. Foi uma imensa maldade, pois Lúcia era tão criancinha, tão indefesa. Um dos álibis encontrados pela velha para demonstrar tanto ódio contra a neta foi o fato de que Lúcia mijava na cama. O que é natural nas crianças. 
Mas Lúcia continuou mijando até os seis anos e dona Antônia sempre falando, que nunca tinha visto uma menina tão mijona, que Inês tinha que dar um jeito naquilo, que nenhum dos filhos dela, nem dos netos jamais tinha sido assim, etc.
Um dia ela fez uma declaração chocante: que se a neta continuasse mijando na rede, ela iria passar pimenta na vagina de Lúcia! Isso mesmo. Só ameaça, dirão vocês. 
Poderia ter sido só ameaça, mas, infelizmente, ela cumpriu o que disse. Lúcia me contou sobre esse dia, coberta de lágrimas. Da dor que sentiu, acordando no meio da noite e a velha, coincidentemente perto dela, fingindo não saber de nada:
– O que foi, minha filha?
Inês acudiu ao choro de Lúcia e foi direta com a mãe:
– O que foi que a senhora fez com ela?
Dona Antônia disse que não tinha feito nada, mas Inês desconfiou porque Lúcia chorava muito e passava, impaciente, a mão na vagina. Foi Inês quem deduziu o que tinha acontecido, mas a velha nunca admitiu o que tinha feito.
Inês dizia que estava “passando uma chuva” na casa da mãe, mas depois desse dia se apressou para sair e viajar para a cidade onde o marido estava trabalhando e morando. 
Disse mais: que ela e a filha preferiam enfrentar tempestades, até mesmo embaixo de um viaduto, do que passar chuva na casa da mãe.
Viajou e enfrentou a vida junto com Paulo. Mas alguns anos depois o relacionamento deles acabou. Lúcia não quis me dizer o que aconteceu. Inês e Lúcia voltaram para cá. Lúcia era agora uma adolescente. Não foram para casa de dona Antônia, mas para a casa de Lurdes, irmã de Inês. Ficaram lá por um tempo, Inês se reconciliou com a mãe e, pouco depois, Inês estaria de volta à casa de dona Antônia.
Exceto pela separação, parecia tudo em paz. Parecia. Não demorou muito para dona Antônia voltar a falar de Paulo: 
– Um dia ele me lançou uma palavra que eu nunca esqueci!
E completava:
– Aquele nego vagabundo!
Inês e Lúcia tiveram que voltar a conviver com essas lembranças e com o ressentimento sem fim de dona Antônia. Inês terminou por se adaptar à situação.
– Deixa a mãe pra lá, liga não – dizia Inês para Lúcia.
No entanto, Lúcia ligava, pois, quando dona Antônia se referia de forma racista ao seu pai, Lúcia sabia que a avó estava querendo, de fato, era atingir a ela, Lúcia. E conseguia. Lúcia chorava escondida. 
Aguentava humilhações e ficava calada. Inês, como agora passava o dia fora, trabalhando, não ouvia, não sentia nem ¼ do que sobrava para a coitada de Lúcia.
Depois que Inês foi embora, mais uma vez tentar a vida em outro lugar, a situação piorou para Lúcia. Foi quando ela decidiu ir embora também e foi quando ela me contou essa história, que agora eu reconto para vocês.
É uma história triste com um mau exemplo. Aliás, com um péssimo exemplo: uma avó racista, que odeia a neta.
Que todas as coisas tristes que aconteceram na vida de Lúcia nos sirvam de lição para que a gente veja como a família é importante e que o papel dos pais e dos avós é passar muito amor para seus filhos e netos. 
Isso não é pedir demais.
Essa era a história que eu tinha para contar a vocês.

O professor terminou de ler. Eduardo esperava o seu comentário. “Tá bem escrito”, disse o professor. “O senhor gostou?”, quis saber Eduardo. “Gostei. Mas eu acho que tem que mudar algumas coisas”, advertiu o professor. “O quê, por exemplo?”, perguntou Eduardo. “Vamos ver”, disse o professor, voltando para o começo da história.
“Eu acho que você deveria substituir o termo ‘velha’ por outro, menos depreciativo”, sugeriu o professor. “Como o quê?”, perguntou Eduardo. “Não sei... ‘aquela anciã’, talvez...”, propôs o professor. “Aquela anciã?”, estranhou Eduardo. “Mais ou menos... algo desse tipo; ‘velha’ é muito pesado”.
“O quê mais?”, continuou Eduardo.
“Eu acho que você deve tirar a palavra ‘mijando’ e colocar ‘urinando’”, sugeriu o professor. “É mais elegante”, completou. “Sempre que for usar o verbo ‘mijar’ substitua por ‘urinar’, certo?”.
“Ok”, respondeu Eduardo. “Mais alguma coisa?”.
“Só mais uma”, falou o professor. “Eu acho que essa parte que fala que a avó passou pimenta na vagina da neta é muito forte”, argumentou. “Muito forte?”, perguntou Eduardo. “Sim; muito forte”, repetiu o professor. “Muito forte, mas é verdade”, explicou Eduardo. “Eu sei”, disse o professor. “Mas às vezes, pra gente mostrar a verdade é preciso esconder certas verdades”, explicou o professor. “Como assim?”, perguntou Eduardo, confuso. “A avó da sua história está parecendo com a madrasta má dos contos de fada”, disse o professor, sem responder a pergunta anterior. “Não é uma madrasta má, é uma avó má, e a história não é um conto de fadas, infelizmente é tudo verdade, é o exemplo negativo que eu acho que as pessoas não devem seguir”, explicou Eduardo, chateado.
“Não se preocupe; mesmo com esses retoques, o exemplo negativo continua aí. No geral, sua história está muito bem escrita; faça essas pequenas mudanças e eu acredito que será uma das melhores histórias dessa turma. Ok?”, concluiu o professor e entregou as páginas digitadas para Eduardo.
Visivelmente aborrecido, Eduardo saiu sem se despedir. No dia seguinte, não foi à escola.
Jamais entregou a história ao professor, nem a mostrou aos colegas, que continuam sem conhecer a história triste de Lúcia e sua avó racista.

Do livro "Histórias exemplares: para levar no bolso", 2015.

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

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