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sábado, 24 de novembro de 2018

Tanta lida pra tão pouca vida



É uma pena que a escola ainda não tenha aprendido a ouvir a si mesma, quando se trata de ensinar o idioma materno.
Ouvir a si mesma, sim, afinal, o que é a escola sem a comunidade escolar? É na comunidade e, por tabela, na escola, que encontramos a “contribuição milionária de todos os erros”, como dizia Oswald, o modernista cuja obra, ainda não completamente compreendida, nos mostra que não vivemos na "pós-modernidade", uma vez que a modernidade sequer foi alcançada.
Quando os professores realizamos nossa “semana diagnóstica” esquecemos de contemplar nesse diagnóstico os falares da comunidade. Devemos mapear as formas com que alunos, pais, professores e funcionários escolares nos expressamos cotidianamente. Para, assim, prepararmos melhor nossas aulas de português.
Ah, o português... Supostamente, “a língua mais difícil do mundo”. Tão difícil que bloqueia nossos alunos no aprendizado de uma língua estrangeira.
– Professor, como é que eu vou aprender inglês, se eu não sei nem português?
Já ouvi essa pergunta um trilhão de vezes. E, convenhamos, uma pergunta bem elaborada, para quem insiste em dizer que não sabe a própria língua...
Se a referência é em relação à língua escrita, não é preciso que todos nos tornemos escritores, mas que dominemos as formas básicas de expressão (o que não impede, claro, de alçarmos voos mais altos, rumo aos céus da literatura...).
Meus primeiros insights linguísticos foram provocados pela minha tia Ina. Ela falava coisas espetaculares, ao mesmo tempo em que me ensinava como proceder como bom menino e futuro exemplar cidadão brasileiro. Quando eu queria continuar comendo uma fruta que acabara de derrubar no chão, por exemplo, Ina, imediatamente, me mandava “rebolar no mato” a fruta. E, embora nem sempre tivesse qualquer mato por perto, eu sabia que tinha que jogar fora o outrora desejado alimento.
Receita para fazer uma criança parar de chorar era com ela mesmo:
“Chore não... Que os ói dói e as barata rói.”
A gente parava de chorar no mesmo instante, imaginando aquela aterrorizante cena: baratas nojentas roendo os olhos de inocentes crianças... Sem que o soubesse, minha querida tia compunha uma finíssima imagem surrealista, digna de Buñuel.
“Tanta lida pra tão pouca vida”, lamentava-se Ina, ditado que eu não entendia na época, mas que soava imensamente poético (embora eu também não soubesse ainda o que era poesia).
Enfim: para falar das expressões e da expressividade de Ina uma crônica é pouco.
A língua, portanto, é essa coisa mágica, fantástica, mas que requer uma qualidade que estamos perdendo: o saber ouvir.
Para aprender, é preciso saber ouvir. Para ensinar, também. Mas são tantos os ruídos da “pós-modernidade” que nos atrapalham – tanto a nós, professores, como a nossos alunos – de ouvir bem os sons que realmente importam, que se revela mui edificante presenciar diálogos como esse:
– Vou terminar o ensino médio e não aprendi nada de português. Verbo, por exemplo, o que é verbo?
– Verbo é aquele negócio de português. Ó, por exemplo, o verbo “to be”...
E foi então que, como professor, finalmente entendi aquele ditado que tanto ouvi durante a infância na voz de minha saudosa tia:
– Tanta lida pra tão pouca vida...

Pio XII, Maranhão, 24/11/2018, 20h8min.
Para Ina.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A teia invisível da manipulação

A partir do Tema do Enem 2018, escrevi essa dissertação argumentativa:

A teia invisível da manipulação
Gilcênio Vieira Souza


Viagens no tempo e no espaço, teletransporte, contatos com alienígenas e outras imaginativas antecipações futurísticas sempre foram temas recorrentes na ficção cientifica, seja no cinema ou na literatura. No entanto, imaginações tão férteis não previram uma invenção, mais simples, que mudaria o mundo: a internet. A comunicação instantânea, a possibilidade de armazenamento de dados em “nuvens”, a criação de redes virtuais de relacionamento (redes sociais), constituem uma realidade que tem exercido influência decisiva em muitas áreas, tais como política, economia e, principalmente, comportamento.
No entanto, uma constatação tem questionado a nossa capacidade de autonomia em relação ao uso da internet: analistas observaram que grande parte das nossas decisões são pré-direcionadas a partir dos nossos “movimentos” na web. Dados são rastreados e interpretados: o resultado vem em forma de produtos, serviços e posturas comportamentais, que contam com grande chance de adesão por parte do cidadão comum, pois são fruto de uma manipulação dificilmente verificável. Isso explica, por exemplo, o fato de que quando você assiste a um filme na Netflix, surge imediatamente uma lista com outros filmes que você supostamente assistiria. Explica também seus “likes” no Facebook, que “atraem” páginas e postagens similares as que você curtiu.
Contudo, a dimensão do poder político desse tipo de controle do comportamento só pôde ser realmente analisada, no Brasil, a partir do resultado da eleição presidencial de 2018. Reportagem da Folha de São Paulo revelou um esquema de compra de disparos em massa de mensagens antipetistas na rede social WhatsApp, que favoreceu o candidato eleito Jair Bolsonaro. A maioria das mensagens era constituída de fake News, selecionadas e disparadas com base em perfis previamente definidos. Segundo a matéria, as listas permitiam a segmentação dos usuários por região, gênero, idade e renda. Dessa forma, a recente eleição presidencial no Brasil revelou um tipo extremo de manipulação do comportamento que põe em xeque o conceito tradicional de democracia, uma vez que fica demonstrada quão ilusória é a suposta liberdade de escolha do eleitor.
Diante dessa realidade, deve-se procurar acionar a justiça, a fim de punir fraudes, abusos, a produção e a divulgação de fake News e todo e qualquer ato passível de punição que tenha relação com a manipulação do comportamento. Por outro lado, diante da evidência de que há fortes interesses econômicos por trás da fabricação desse tipo de manipulação, os cidadãos não podem confiar plenamente que a justiça seja feita. Devem, assim, organizar grupos autônomos de checagem de dados, fontes e informações, a fim de detectar e desvelar a manipulação a que estamos sujeitos. Que é também desvelar o óbvio: pelo seu caráter de teia, a web metaforizava em si a armadilha de que se constitui.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Soneto para o Dia dos Professores do ano de 2018


Sou professor e ensino esperança.
O diálogo é minha metodologia.
Ver a imperfeição, é a filosofia
Que me explica o adulto e a criança.

Contradições e pedras no caminho
Sempre existiram e hão de existir.
À insensatez vamos resistir
(Pois, nessa luta, não estou sozinho).

O ódio, a ignorância, a mentira
Não apagam as palavras e a lira
De Castro Alves, de Cruz e Sousa.

De Noémia, Graciliano Ramos
E milhares de mestres que amamos:
A humanidade é nossa grande lousa. 

sábado, 29 de setembro de 2018

Primavera vai chegar (cordel)



Primavera vai chegar (cordel)
Gilcênio Vieira Souza / Annes Lima Silva Souza


Nosso Brasil tem vivido
Em clima de muita tristeza
Desde que foi dado um golpe
Tem faltado o pão à mesa
Aumentado o desemprego
Semeada a incerteza.

Com o impeachment de Dilma
O golpe só começou
Afastaram a presidente
Que o povo colocou
Inventaram umas desculpas
Mas nada disso colou.

“É com o supremo, com tudo”,
Disse o Romero Jucá.
Explicando como o golpe
Ia ter que funcionar
Pondo juntos’ que tramaram
Para o país afundar.

Uns deputados ladrões
E os amigos senadores
Colocaram o Michel Temer
Numa troca de favores
E enquanto os tais se dão bem
O país enfrenta horrores.

Tudo que é ruim pro povo
Os golpistas aprovaram
Em saúde e educação
Os recursos congelaram
Os pobres hoje ‘tão vendo
Que tristes dias chegaram.

O vampiro presidente
Suga o sangue da nação
Beneficiando os ricos
Aos pobres não dá a mão
Sua reforma trabalhista
É uma nova escravidão.

E as falcatruas de Temer
Cadê qualquer punição?
E o assessor deputado
Pego com a mala na mão
Carregando uma propina
Que era de meio milhão?

Tem também o Aécio Neves
Que pousou de moço bão
E ajudou a dar o golpe
Pois perdeu a eleição
Mas que foi desmascarado
Através duma gravação.

“Tem um pra gente matar
E evitar a delação”
Aécio Neves falava
Bem no meio da gravação
A vida humana tratando
Sem um pingo de compaixão.

Nada lhe aconteceu
Livre o tucano está
Mas desprezou uma lição
Que não é pra desprezar
Que o homem já foi pó
E que ao pó voltará.

E a foto dos golpistas!
Lembram da foto, minha gente?
Lá na frente tá o Temer
O vampirão presidente
Cá na frente tá o Aécio
E o Moro sorridente.

Sim, o juiz Sérgio Moro
Esse é o maior golpista
Tirar Dilma não bastava
Pra’quele juiz fascista
Era preciso barrar
Todo o sucesso petista.

Foi então que Sérgio Moro
Iniciou sua obsessão
De prender Lula da Silva
Maior líder da nação
E pra isso o juiz
Rasgou a Constituição.

Moro fez tudo que é coisa
Que não faz juiz decente
Com os tucanos e Temer
Tirou foto sorridente
Agiu como um ditador
E grampeou a presidente

Nunca ninguém tinha visto
Um processo tão veloz
Como o processo de Lula
Dirigido pelo algoz
Que não quer só prender Lula
Mas tirar do povo a voz.

Atropelando as leis
Sérgio Moro foi agindo
Cometendo injustiças
Pressionando, coagindo...
Mas o povo percebeu
‘Quanto ele está mentindo.

Os poderosos já sabem
Pertinho da eleição
Que manter o Lula preso
Não foi melhor solução
Que os humildes, os oprimidos
Descobriram a armação.

Descobriram a armação
E estão prontos pra votar
Em Haddad e Manuela
Para o Brasil salvar
Da ditadura que o Coiso
Deseja aqui instalar.

Esse Coiso é resultado
Da raiva que é dirigida
Contra Dilma e contra Lula
Raiva que foi construída
Por políticos, juízes
E essa mídia tão fingida.

Tem a Veja, Estadão
Band, Record, Folha e Globo
O impeachment apoiaram
Achando que o povo é bobo
Espalharam muito ódio
Procriando muito lobo.

Com o golpe, a paz foi embora
E a violência crescendo
Assassinaram Mariele
Nada está se esclarecendo
Quilombolas sendo mortos
Tanta vida se perdendo.

Dispararam contra o ônibus
Da caravana petista
Felizmente, nenhuma vítima
Pra aumentar a triste lista
Dos que ousam enfrentar
A violência fascista.

Assim, chegamos agora
Bem perto da eleição
Numa campanha mundial
Grande mobilização
Em que milhões de mulheres
Hoje gritam: “ele não”.

Bolsonaro é o coisa ruim
Da política brasileira
É o ódio ambulante
É o capitão da besteira
Sua mente troglodita
Só produz bastante asneira.

Esse Coiso é intolerante
E muita coisa pior
Ele acha que mulher
É um ser inferior
Merece ser estuprada
E ter salário menor.

E o general Mourão?
Seu vice não é diferente
Acha que avó e mãe
Não criam gente decente
General, só digo uma coisa:
Desajustada é sua mente.

O general também quer
Com o décimo acabar
Esse valorzinho a mais
Que vivemos a esperar
Planejando o natal
Que estamos a sonhar.



Ele é um dos que aprovaram
A reforma trabalhista
Bolsonaro também é
Homofóbico e racista
Aplaude torturador
Esse Coiso é um nazista.

Não consigo entender
Alguém que se diz cristão
E defende esse Coiso...
Não, não tem explicação...
Jesus morreu numa tortura
Chamada crucificação!!...

Como é que um cristão
Vai defender a tortura
Se Jesus pregou o amor
Para toda criatura?
“Amai-vos uns aos outros”,
Disse Jesus com ternura.

Os fascistas como o Coiso
E seu general Mourão
Não têm leveza na alma
Só ódio no coração
Portanto, vivem nas trevas
E querem entrevar a nação.

Se dependesse dos dois
Seja o Coiso ou o Mourão
O Brasil inda estaria
No tempo da escravidão
Assim a gente percebe
De que lado eles estão.

Estão do lado dos ricos
E desprezam os oprimidos
Não querem o pobre na escola
E jovens esclarecidos
Querem a brutalidade
De outros tempos já idos.

Por isso, chegando a hora
É clara a nossa opção
Somos por democracia,
Por salário e educação
Com Haddad e Manuela
Dias melhores virão.

Tentaram calar a voz
Do nosso ex-presidente
Tucanos são intocáveis
Mas pra Lula é tudo urgente
Ele sofre a injustiça
De um poder prepotente.

Mas mesmo longe do povo
Sua mensagem está em nós
Pois somos milhões de Lula
Gritando numa só voz
Chega de ver essa gente
Cuspindo um ódio feroz.

O Haddad e a Manuela
Representam a esperança
De um tempo de respeito
De um tempo de bonança
Em que não teremos medo
De sorrir como uma criança.

Uma flor ou duas flores
Do jardim podem levar
Podem até levar centenas
Querer tudo exterminar
Mas não podem impedir
A primavera de chegar.



terça-feira, 29 de maio de 2018

130 anos de abolição?



Cantando a dor negra, lembrando atentos
a todos a simples verdade evidente:
o negro não vive toda plenamente
a vida pedida em tantos lamentos.
Veio a liberdade, com seus desalentos,
direitos e chances ao negro negar,
e esse sistema, então, disfarçar:
pois o sofrimento bem muito durava
e a tal liberdade pouco avançava
(e as águas dos olhos correndo pro mar).

De cá eu insisto em tambores ouvir,
sons que vêm no vento, vêm no pensamento,
trazendo esperança, trazendo um alento,
vontade de sonhar, sonhar e dormir…
Heróis que lutaram, nunca a desistir
de, em prol de ser livres, sempre pelejar,.
fazendo poesias, na lida a sonhar,
artistas, capoeiras, grandes pensadores,
na arte, suas fés e seus dissabores,
eu lembro, cantando na beira do mar.

E da Balaiada vem sangue, pesares...
Mas aplaudo o Cosme, esse líder nato,
e a sua escola, no meio do mato:
carvão nas mãozinhas traçando lugares,
desenhos de nomes, sonhando com mares,
por terras longínquas, livres a voar,
crianças que aprendem o valor do sonhar
e, como Palmares, sonham com a união
de brancos, de negros, uma só nação,
cantando felizes na beira do mar.

Eu vejo Maria Firmina dos Reis
montar uma escola e ser escritora.
Em seu lindo trabalho como professora,
ver nas criancinhas rainhas e reis.
Usando a palavra muito ela fez:
num grande romance a nos retratar
a vida sofrida do escravo, a lidar
com dores, rancores, tanto sofrimento...
De “Úrsula” ecoam beleza e lamento
que ora celebro, na beira do mar.

Irmãos da cor negra, irmãs, ancestrais,
eu ouço tambores, ouço tantas vozes,
cantigas, poemas e sonhos velozes
de quem já não aguenta gemer tantos ais…
Abusos, violências, racismo demais,
os negros, sim, sofrem, até ao lembrar
dos medos de ontem, ainda a assustar:
o olhar que reprova, a polícia na cola,
angústia, terror e a paz que não rola,
enquanto eu protesto na beira do mar.

Sonhava aplaudir o momento marcante
em que se relembra o fim duma tristeza.
Deixar o amargor, brindar a beleza
de uma nação que se quer gigante.
Mas é dor profunda, tão angustiante...
Calados é que não podemos ficar,
Vendo o preconceito a se arrastar
por cento e trinta anos de história:
é chamar os ancestrais, cantar a memória,
esperança e luta, na beira do mar.


Para Zé Pretinho, esquecido poeta genial, criador do galope à beira-mar.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Então, sou avô!




Então, sou avô!
Faz uma semana que entrei no reino da “vovonidade”, espécie de dupla paternidade ou maternidade, condição que pode ser confundida com o despontar da maturidade ou o prenúncio da terceira idade. Ou com nada disso: ser somente um momento singularmente místico (somente, eu disse?). Então, aos 49 anos de idade, tornei-me avô duma linda menina.
E, como todo avô “muderno” (e babão), passo meus dias tirando fotos da minha netinha (quando acorda, quando sorri, quando se espreguiça), enviando-as para as pessoas da família. Sinto-me feliz por viver numa época em que podemos registrar imediatamente os momentos marcantes da nossa vida e compartilhá-los com amigos e familiares. Que sorte, a nossa.
Mesmo que estejamos seguindo o modismo atual, fotografar acontecimentos diários e postar imediatamente nas redes sociais, mesmo que agindo meio Maria-vai-com-as-outras, estamos tecendo nossa memória singular que, numa teia de tantos posts similares, compõem algo como uma memória social, descontados os clichês presentes em cada postagem (não sei se a semiótica, a sociologia, a psicologia etc. se interessam por essa imprescindível constatação científica de um recém-avô…).
Mas, talvez as pessoas da minha geração se lembrem – e se lamentem – que o nosso vínculo com as nossas origens nem sempre foi tão direto e transparente. E foi assim que, ao tornar-me avô, constato, melancólico, que não sei os nomes das minhas avós. Isso mesmo: não sei como minhas avós se chamavam. Sei que meus avôs eram o senhor Manoel (o qual ainda cheguei a conhecer) e o senhor Simão Lino (que, infelizmente, não conheci). Mas… e minhas avós, como se chamavam? Por que seus nomes foram apagados das nossas vidas? (sim, pois sei que a maioria dos netos, meus irmãos, também vivem nesse estado de ignorância). Seus nomes foram esquecidos somente pelo fato de serem mulheres?
Não sei qual a explicação, leitores, mas peço-vos paciência e compreensão: terei agora que concluir esta crônica, pois já-já vou telefonar para minha mãe e resolver duma vez essa pendência familiar. Finalmente irei conhecer os nomes das minhas avós… Ah, mas antes disso, lembrei-me: tenho que tirar mais uma foto da minha netinha...  

Pio XII, Maranhão, 18h22min do dia 15/05/2018.

quarta-feira, 7 de março de 2018

O cabramacho




Ela estava dentro de casa quando ouviu os gritos dos vizinhos: a casa estava pegando fogo. Saiu às pressas; conseguiu se salvar. O incêndio fora provocado pelo seu companheiro, que tentou matá-la queimada, ao mesmo tempo em que destruía a casa.
Ela estava numa festa, com vários “amigos”. Começa a beber, tenta parar, mas os tais “amigos” a incentivam a continuar. Embriagada, é abusada sexualmente pelos “amigos”.
Ela estava bebendo com um colega de escola. Ele colocou algo na bebida, sem que ela percebesse. O “boa noite, Cinderela” funciona e ele abusa sexualmente dela.
Ela foi estuprada por quatro “conhecidos” seus. Engravidou, teve o filho. Passou, às vezes, a desenvolver um comportamento incoerente, imprevisível. Algumas pessoas riam dela, achando-a louca.
Ela não queria ficar sozinha em casa com o padrasto. Quando a mãe saía, o padrasto abusava dela.
Ela estava bebendo com um “amigo”, comemorando o aniversário dele. Embriaga-se, acorda na cama do “amigo” e descobre que foi abusada por ele.
Todas essas situações são reais.
São algumas das histórias que ouvi na escola, ao longo dos anos, narradas pelas próprias vítimas ou por colegas delas. A violência e a falta de respeito para com a mulher é, portanto, um problema cotidiano que, mesmo que não nos atinja diretamente, não tem como ignorá-lo, pois somos criaturas humanas que sentem, não somos pedras: como não ver ou não escutar o clamor dessas mulheres com suas almas doloridas?
“Elas provocaram”, dizem alguns cínicos, referindo-se ao estupro. É como se essa desculpa, que é do tempo-do-bumba, tentasse justificar o crime do ladrão pelo fato de a janela de sua casa não estar devidamente fechada ou você estar cochilando no banco da praça… Mas… Nem isso. Uma exposição em Bruxelas, na Bélgica, com roupas de vítimas de estupro, mostra que essa “explicação” não tem fundamento. Segundo a BBC, “a mostra traz trajes que mulheres e meninas estavam usando no dia em que sofreram a violência sexual e reúne calças e blusas discretas, pijamas e até camisetas largas”.  
Mas, se não podemos ignorar a cultura da violência contra a mulher e, principalmente, a cultura do estupro, tão perto de nós, também não podemos fingir que não vemos as idiotices postadas nas redes sociais com aquelas comparações esdrúxulas em que as mulheres são provocadas a realizar tarefas pesadas ou difíceis, em que se conclui que o sexo feminino deve, assim, conhecer o seu lugar ou, em outras palavras, reconhecer a sua submissão ao homem. São idiotices, já falei, mas são idiotices que estimulam a misoginia e que ecoam na mente fascista dos babacas que se creem machos e superiores e que acham que as mulheres podem ser agredidas ou violentadas caso “ousem” discordar das vontades do homem. Postura mais que medieval, pré-histórica, do tempo das cavernas, anacronicamente presente em pleno século XXI.
Dia desses vi uma postagem dessas, de um ex-aluno, um jovem que havia se destacado com brilhantismo no ensino médio. No texto, ele ridicularizava as mulheres. Descobri depois o seu ódio pela ex-presidenta Dilma Rousseff e a sua idolatria por Jair Bolsonaro. Não é coincidência. No Brasil, ridicularizar as mulheres, naturalizar a violência dos homens, atacar Dilma, Lula, o PT e os governos petistas, defender a ditadura e Bolsonaro tem sido um comportamento que se enquadra nessa lógica fascista: as mulheres devem ser espezinhadas no dia a dia e aniquiladas politicamente.
Quando vejo um jovem destacado nos estudos propagando o desrespeito às mulheres e se comportando como um fascista (como um fascista, Deus meu, como um fascista?) vem-me a pergunta: onde falhamos, nós, professores? Onde falhou a escola? Lembrei-me daquela mensagem deixada por um sobrevivente do holocausto nazista:
“[…] Meus olhos viram o que nenhuma pessoa devia presenciar. Câmaras de gás construídas por engenheiros ilustrados, crianças envenenadas por médicos instruídos. […] Assim, desconfio da educação. Meu pedido é o seguinte: ajudem os seus discípulos a serem humanos. […] Ler e escrever, saber História e Aritmética só são importantes se servirem para tornar os nossos estudantes humanos.”
Então, parece que temos que fazer o óbvio: propor e realizar uma Educação do Respeito; uma educação que diga e repita o óbvio: todos e todas devem ser tratados respeitosamente.
Mas, essa educação não pode ser pensada e realizada sem que revisemos o conceito de cabra-macho, expressão bem brasileira que resume o machismo planetário. Segundo o Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, cabra-macho significa: “homem destemido; valentão”. Eu, porém, desconfio que os cabras-machos possuem muitos medos, sim, e seu suposto destemor seja apenas uma fachada para ocultar aqueles medos. Principalmente o medo diante da mulher e seus mistérios… (finalmente, um pouco de poesia no texto).  
Logo, proponho que redefinamos o termo “cabra-macho”, que deve também ganhar uma nova escrita, sem hífen, ficando assim: cabramacho. Proponho também novos significados:
Cabramacho não é o que se vangloria de ter “pego” a mulher, mesmo contra a vontade dela; cabramacho é aquele que sabe ouvir a mulher e compreender seus desejos (bem como quando ela não está a fim); macho é o cabra que tem a coragem de ouvir e aceitar um “não”;
Cabramacho não é o que fica esperando que a mulher faça todo o trabalho de casa, mas o que sempre se apresenta como parceiro nas tarefas do lar;
Cabramacho não é o que dá cantadas baratas, faz elogios sexuais e ainda se acha engraçado e espirituoso; cabramacho é o que consegue conversar sobre os mais diversos assuntos com a mulher, inclusive sobre relações afetivas, sem qualquer demonstração da pretensa superioridade masculina; sabe ele, cabramacho, que os machos não são seres superiores.
Cabramacho não é o sempre-destemido, mas, ao contrário, o que tem a coragem de revelar seus medos.
Eis a síntese da cabramachice: a consciência de que os machos não são superiores.
Talvez, devamos começar por aí a revolucionária – embora, já disse, óbvia – Educação do Respeito.


Exposição na Bélgica traz roupas de vítimas de estupro para romper mito de 'culpa da mulher'. In: http://www.bbc.com/portuguese/geral-42643532. Acesso em: 06 mar 2018.
Carta de um sobrevivente do holocausto. Disponível em várias páginas na internet.