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quarta-feira, 3 de março de 2021

Rua da Tira (da série “Anedotas (sur)reais”)



Milhões de anos atrás, numa galáxia muito distante, o prefeito duma cidadezinha autorizou o asfaltamento de uma rua que se encontrava há muito tempo necessitada desse benefício.

Mas, ao realizar o serviço, apenas um lado da rua foi asfaltado. O prefeito, que disputava a reeleição, condicionou a realização completa da obra à sua vitória nas urnas. Ou seja, os moradores da rua deveriam votar no prefeito para que a rua fosse completamente asfaltada.

Mas a chantagem não funcionou. O prefeito não foi reeleito.

E a rua, batizada originalmente com o bonito nome de um animalzinho da fauna local, depois daquele estirão de asfalto ocupando apenas um lado, foi, então, rebatizada, pela voz do povo, como “Rua da Tira”, nome que despertava a curiosidade dos viajantes intergalácticos que porventura visitassem o lugar.

terça-feira, 2 de março de 2021

A literatura e o direito ao sonho



“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, / as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá.”

“E agora, José? / A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. / E agora, José?”

“Deus, senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, / se eu deliro ou se é verdade, tanto horror perante os céus?”

“Quando certa manhã Gregor Samsa despertou, depois de uma noite mal dormida, achou-se, em sua cama, transformado num monstruoso inseto.”

“Valeu a pena? Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.”

As citações que abrem esse texto são conhecidos trechos de obras-primas da literatura universal.

O primeiro é da Canção do exílio, em que o poeta Gonçalves Dias fala da saudade da sua terra natal, das palmeiras e dos sabiás da sua infância. São versos simples, diretos, que deixam uma musiquinha em nossa cabeça e uma saudade sabe-se-lá-de-quê.

No segundo trecho, Carlos Drummond de Andrade criou uma expressão que logo se incorporou à nossa cultura. A frase “E agora, José?” escrita pelo poeta enquanto acompanhava, perplexo, a 2ª Guerra Mundial, é, desde então, pergunta comum que os brasileiros se fazem diante de tantas outras perplexidades, como nesse momento, por exemplo, em que o país perdeu mais de 250 mil vidas para a Covid19 enquanto o insensível presidente trata a doença como uma gripezinha, combate o uso da máscara e promove aglomerações. E agora, José?

No terceiro trecho, Castro Alves ousa olhar para os céus e chamar Deus à atenção: como é possível, Deus, que se permita o horror da escravidão?

No quarto trecho, temos a abertura da obra-prima “A metamorfose”, em que Franz Kafka narra os tormentos do jovem Gregor, que depois de acordar transformado numa barata, vive a decepção de ser rejeitado pela família, numa metáfora de muita força e atualidade.

E, por último, o poeta Fernando Pessoa. “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.” Com essa breve, porém profunda mensagem do poeta dos heterônimos, recomendo: fechem o livro de autoajuda e vamos ler poesia.

Vamos ler literatura.

Todas as obras das quais eu retirei os trechos acima, repito, são obras literárias.

Para se realizarem como humanos plenos, todas as pessoas precisam da literatura.

Antonio Candido, um dos nossos maiores críticos literários, diz que a literatura “é o sonho acordado das civilizações”.

E diz mais:

“Assim como não é possível haver equilíbrio sem sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.”

Excelente comparação: a lógica do capitalismo é impor jornadas extenuantes de trabalho, que nos roubam muitas horas do sono, em que, durante os nossos sonhos, escrevemos enredos geniais, embora em geral não compreendidos, ou às vezes sequer lembrados. Todas as noites escrevemos uma página, para nós mesmos, do grande livro da nossa vida. Mas, se dormimos mal, mal escrevemos e pior lemos. Os sonhos dizem quem somos e nos escrevem mirabolantes check-lists de como viver melhor. Mas estamos tão ocupados em tentar viver, que sequer temos olhos para ler o grande romance da nossa vida.

Por outro lado, sem a leitura de poemas, crônicas, contos, novelas, textos teatrais, graphic novels e romances, deixamos também de sonhar acordados e perdemos a oportunidade de nos conhecer melhor.

Sem a leitura literária, ficamos sem reconhecer a vastidão da vida. Do mundo, mundo, vasto mundo. Ficamos presos a uma rotina asfixiante. Alienados da nossa essência humana.

Por isso que os fascistas queimam livros, por isso que odeiam a literatura: porque a linguagem literária e a fabulação podem nos tornar seres humanos mais plenos, bem como nos permitem ser vastos e diversos e ver os outros como tão familiares em suas diferenças. Em sua amplitude de vozes e significados, a literatura é o oposto do fascismo, que quer indivíduos imbecilizados, incapazes de voz própria. O fascismo quer robôs imbecilizados, sempre prontos a dizer “sim, senhor” e aceitar a violência como natural. Os fascistas querem uma sociedade de zumbis obedientes; a literatura nos incita a um mundo de livres sonhadores. 

Portanto, a literatura é essencial. Precisamos ler, principalmente os clássicos, que, segundo Ítalo Calvino, são aqueles “livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”.

O direito à literatura, e, consequentemente, ao sonho, é essencial – e dele não podemos abrir mão.

Ler é ir ao fundo do mar de cada um, até onde normalmente não chega a luz e nem se escuta uma voz: é a literatura quem faz isso por nós: ilumina as águas profundas da alma em sua superfície de espelhos...


Imagem de uso livre, disponível em pixabay.com.