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quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Cordel do Setembro Amarelo

 


Falar sobre suicídio
Não é fácil, não senhor.
Pois mexe com sentimentos,
Temos que falar da dor
Perguntando a nós mesmos
Onde se escondeu o amor.

Setembro foi escolhido
O mês para prosear,
Sobre o delicado tema
Nós temos que conversar.
Sobre as causas da tristeza
É necessário falar.

Na vida contemporânea,
Tantas e tantas pressões
Inibem muitas pessoas
E trazem desilusões,
Atrapalham as alegrias,
Provocam decepções.

Quem de nós se preparou
Pra nunca falhar na vida?
Quem que sabe o que fazer
Pra curar qualquer ferida
De uma alma que às vezes
Se sente desprotegida?

Tem esse individualismo
Que isola os seres humanos,
E tem muita opressão
Alterando tantos planos,
E uma intensa exploração
Perpetrando muitos danos.

Como enfrentar tudo isso
E permanecer em paz?
Na cabeça de uma pessoa
Se passam coisas demais...
Tem os que reagem lutando
E outros sufocam seus ais.

Jovens, idosos, indígenas...
Merecem mais atenção.
Bem como todos que moram
Nessa ou naquela nação
Que não remunera direito
Os que lutam pelo pão.

Seja assédio ou menosprezo
Aos sentimentos de alguém,
Ou seja tratando mal
A quem te tratou tão bem,
Tudo machuca profundo
E a depressão logo vem.

De apoio psicológico
Muitos estão precisando.
Sabe aquele silêncio
De quem mal está olhando?
No íntimo a pessoa espera
Que cê vá se aproximando.

Sobre o que nos causa dor
É difícil se expressar.
Mas é mais difícil ainda
Sem ninguém para escutar.
Se puder, cale um pouquinho
Pro seu amigo falar.

Deixe que ele ou ela fale
E não faça julgamento.
Também não compare entre
Um e outro sofrimento.
Cada história é singular,
Singular cada lamento.

Se não há muito lugar
Para acolher a tristeza,
Quem puder ouvir, que ouça
E deixa fluir com leveza
Do fundo de cada ser
Sua ocultada beleza.

Não somos proibidos de
De vez em quando falhar.
E se somos imperfeitos,
A dor devemos mostrar
Àqueles nossos amigos
Que estão prontos pra escutar.

É grande a alienação
Na atual sociedade.
Nas redes sociais se vê
Uma falsa felicidade.
Sabe mesmo o que importa?
Ser quem somos, de verdade.

Quero chamar a atenção
Pra essa singularidade
De sermos, no fundo, iguais
E de sermos novidade.
Única, cada pessoa
Em sua individualidade.

Portanto, sejas quem és...
E viva a complexa vida!
Você vai ter machucados,
Vai ter mais de uma ferida,
Mas valorize a história
Só por você construída.


Pio XII, Maranhão, 08 de setembro de 2022, 14:46.

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

buraco

 


Sim, era tudo floresta:

Galáxias de mato verde.

Bebia com os passarinhos

E juntos matavam a sede.

Mas foi sumindo seu mundo...

Cadê seus irmãozinhos, quede?

 

Uma fera sanguinária

Que as matas espreitava

Cuspiria fogo e ódio

A quem no caminho encontrava.

Terra, minério, madeira

- O tudo nunca lhe bastava.

 

Foi assim então que os índios,

Que o povo que ali vivia,

Foi morrendo, e assassinado

A cada lua, a cada dia,

Ficando, então, a floresta,

Sem vida, sem alegria.

 

Com muita cisma, com medo

Do “homem civilizado”,

Só um índio, então, restou,

Do universo abandonado.

Mas com um universo todinho

Em seu âmago alado.

 

Escondia-se pra não ver

A “civilizada gente”.

Embocava pela mata

Pra não ficar frente a frente

Com o monstro da ganância

Ambicioso, demente.

 

Quando é que a vida tornou-se

Um buraco na floresta?

Bem atento ao sol andante,

Já não mais fazia festa

Com seus amigos bichinhos.

A esperança ainda lhe resta?

 

Buracos, muitos buracos,

O índio passou a cavar.

E na imensa floresta

Um buraco era seu lar.

Tudo pra sobreviver

E preservar seu sonhar.

 

Em completa solidão

Entregou-se à sua dor.

Duvidou das divindades,

Desacreditou do amor:

Em seu idioma não tinha

Sinônimo para “terror”.

 

Mas terror foi o que viu,

Com seu mundo devastado.

Carregou sua tristeza

Em seu oco isolado.

Foi de “índio do buraco”

Que passou a ser chamado.

 

E eis que ele, afinal,

O homem branco encontrou.

Não foi um encontro marcado,

Não foi combinação de amor.

Ao contrário, foi achado

Depois que a morte o levou.

 

Estava vestindo penas

De araras e outras aves.

Pr'além do oco final,

Sonhou com barcos, com naves

E nuvens viajadeiras

Pra lugares mais suaves.

 

Mas e seu verdadeiro nome?

Que nome esse índio tinha?

E seus mitos, suas lendas

De onde sua história provinha?

Como é que ele chamava

Sua cantante avezinha?

 

Em nosso país não foi luto

E poucos choraram sua ida.

Mas com ele vai-se embora

Grande pedaço da vida:

Ventos duma cosmologia

Sem destino, sem saída.

 

Poucos de nós percebemos

Que acabou-se uma nação.

Que sóis, estrelas e luas

Nunca mais orbitarão

Esse encantado universo

Do qual nunca falarão.

 

Mas eu falo. Sim, eu falo

Dum buraco que se abriu,

Esse cósmico buraco

No coração do Brasil.

Embora falar não possa

Da alma que se esvaiu.

 

O retrato de quem somos,

Nossos indígenas são.

Sépias fotografias

Que na moldura já não estão.

E em nossos futuros álbuns?

Será que nunca estarão?

 

Do capital, a cobiça

Avança sem se deter.

Cada índio, cada tribo

É preciso proteger.

Locupletando os vazios

Do nosso jeito de ser.

 

Buracos nenhum na mata

Não fizéssemos jamais...

Se cuidássemos da vida

E da cultura ancestrais,

Orgulhosos choraríamos

Avôs, avós, mães e pais.

 

Santa Inês, Maranhão, 02/09/2022, 13:22.

 

 

domingo, 14 de agosto de 2022

Era uma vez em Hollywood no sertão do Cariri

 



Há alguns dias, os canais Sony e AXN exibem uma programação de filmes representativos dos anos sessenta, período em que se passa a trama do novo filme de Quentin Tarantino, “Era uma vez em Hollywood”. O próprio Tarantino faz a apresentação das obras, escolhidas por ele, num bate-papo com a crítica de cinema Kim Morgan. Imperdível.
A coincidência de essa programação especial ocorrer durante essa semana e concluir exatamente hoje, Dia dos Pais, me traz boas recordações do meu pai, sua paixão pelo cinema hollywoodiano e o quanto essa paixão me influenciou.
Durante a sua infância, o senhor Luís Vieira Souza, meu pai, acostumou-se a descer o distrito de Santa Fé em cima de um burro, acompanhante assíduo do seu Manoel, meu avô e pai de papai, rumo ao grande encontro social que era a feira do Crato (e que talvez ainda o seja, pois saibam que as feiras do Nordeste não perderam o seu encanto). Para vovô, esse era o momento daquela prosa bem destilada nas conversas dos amigos, e ele próprio prosear seus causos e alumbramentos. A tal ponto que, certa vez, concentrado em seus proseamentos, vovô esqueceu de papai em cima do burro, que desembestou numa carreira e arremessou papai bem longe. Uma cicatriz no início da calva era lembrança dessa desventura infantil.
Aos dezoito anos, papai já descobrira o cinema. Desceu a Serra do Araripe e chegou a Hollywood. Frequentava as salas do Cine Roulien e do Cine Eldorado, em Juazeiro do Norte. Setenta anos atrás, os cinemas de Juazeiro exibiam uma programação bem diversificada, entre os quais, um capa-e-espada, “O máscara de ferro”, anunciado no “Correio do Juazeiro” como “o primeiro filme americano falado em portuguez”, um filme noir, “A dama de jade”, uma comédia com Virginia Mayo (“Por um corpo de mulher”), “Além do horizonte azul”, em que a atriz Dorothy Lamour exibia na selva seus dotes sensuais, antes de virar musa de Ednardo (“Dorothy L'amour / Com amor te matei / Sereia, n'areia do cinema”)...
Mas, minha intuição me diz que o filme que papai assistiu naquele longínquo agosto de 1949, mais precisamente num sábado, 13, há setenta anos, foi “Máscara do terror”: a estreia do herói Durango Kid nas telonas; pois papai era fã de faroestes. Foi através dele que ouvi pela primeira vez os nomes de John Wayne e Randolph Scott (que papai chamava de Rodolfo Scott), além de Glenn Ford (que ele descrevia como um “mole”), Robert Mitchum, Charles Bronson, Lee Van Cleef, Clint Eastwood. Muito cedo, por influência paterna, ainda adolescente, passei não somente a gostar de cinema, mas a conhecer atores, atrizes e, por conseguinte, diretores, e a olhar um filme a partir dessas referências.
O cinema, Hollywood, principalmente, educou determinada maneira de papai entender o mundo. Embora ainda hoje mamãe relate a emoção que foi assistir com papai a “O cangaceiro” (1953), sabemos que as produções brasileiras sempre foram historicamente minguadas, diluídas pela onipresença de Hollywood em nossas salas de cinema. Editorial da revista “Cena muda”, de 7 de dezembro de 1950, comemorava “o decreto de proteção ao cinema brasileiro, obrigando os exibidores a projetarem em suas telas nada menos que SEIS filmes nacionais por ano”. Desnecessário comentar: a palavra “seis” já está em caixa alta. Quando, no início dos anos 60, papai e mamãe viajaram para Guajará-mirim, no Amazonas, e papai voltou chamando os índios de burros... - foi tudo culpa de John Wayne.
Hollywood intensificou os sentimentos de estranhamento e evasão de papai? Talvez. Ele também gostava de evadir-se na vida real. Tinha temperamento artístico. Era um romântico. Seu Luís tinha uma prosa envolvente, uma capacidade hollywoodiana de encantar as pessoas em seus enredos. Imagino-me como cineasta, câmara na mão, filmando a seguinte cena: é noite e dezenas de pessoas estão paradas diante de uma bodega, a “Casa 21 de Junho”, anunciada, no alto, numa placa com a propaganda de Fanta. Olham para o céu, enquanto, dentro da bodega, uma senhora (mamãe) olha timidamente para os lados. As pessoas na calçada procuram localizar um OVNI. Um senhor (papai), solícito, atencioso, lhes guia na trajetória celeste que o disco voador acabara de fazer. Eu, garoto, assisto a tudo. Minutos depois (não lembro quanto tempo durou a “performance”), dispersas as pessoas, mamãe recrimina papai por ter inventado a história do OVNI, o qual, apenas responde, tranquilo: “Tem nada não, Maria”. Tem nada, papai: é a pequena cota de fantasia que todos, nós, seres humanos, temos direito a gozar, na vida real.

P. S.: um dos cineastas daquela semana de agosto de 1949, Phil Karlson, diretor do noir “A dama de jade” (será que papai viu o filme?), é também o diretor de “The wrecking crew”, cujo lançamento mundial aconteceu exatamente um mês após o meu nascimento, em 05/02/1969, e foi exibido ontem como um dos filmes escolhidos por Tarantino nesse diálogo com o seu “Era uma vez em Hollywood”. The wrecking crew foi o último filme de Sharon Tate exibido antes do assassinato da atriz, um dos motes do novo filme de Tarantino.
 
 
 
Pio XII, Maranhão, 11 de agosto de 2019.

Soneto imperfeito para o Dia dos Pais

 


Meu pai (que já partiu) era um grande matemático,
Um grande matemático sem diploma.
Comunicativo, provava que quem tem boca vai a Roma.
Era bem humorado e emotivo, sem ser romântico.

Sem que saiba disso, ensinou-me a brincar com meus filhos,
Ensinou-me a voltar a ser criança, quando adulto,
E mesmo imperfeito e ingênuo, mas querendo ser absoluto,
Não me conduziu pela mão, mostrou-me os trilhos.

Por amor, a gente também vira pai um dia,
Mesmo sem conhecimento de causa ou faculdade.
Por isso uma coisa tu deves ensinar aos teus pequenos:

A se opor à opressão desde a mais tenra idade,
A combater os opressores e seus venenos,
Que possam ser dignos, sem nunca perder a alegria.


Pio XII, Maranhão, 12/08/2012, 23 horas e 14 minutos.

 

domingo, 31 de julho de 2022

A morte de Maria do Mingau

 


Dona Maria do Mingau morreu.

Foi ontem. Está nas redes sociais. No grupo da escola, todos os professores lamentamos. É que em nossas embaralhadas lembranças, nos vagões em que se confundem anos letivos, alunos, matérias, turnos e gestores da escola, só uma imagem continua a mesma lá fora: a de Dona Maria vendendo o seu mingau no intervalo das aulas.

Vendia, sempre séria, triste mesmo, desconfiada dos gracejos de alguns, atenta com a esperteza de outros, que às vezes, na base da conversa, tentavam conseguir algum desconto – centavos, que fossem, mas era tão ínfimo o lucro dela...

Muitos a achavam antipática. Em geral, os mais jovens, fossem seus fregueses ou colegas que tinham acabado de ingressar no magistério. Os mais velhos, como eu, conhecíamos a razão de sua tristeza e dávamos um desconto para o seu mau humor, aparente ou manifesto.

Dona Maria padecera muitos anos nas mãos de um marido violento e alcoólatra, naquele outrora em que não existia Delegacia da Mulher, nem lei Maria da Penha, nem o artigo 5o da Constituição, nem Constituição Cidadã...

Se hoje ainda tem gente que reluta em meter a colher na briga de marido e mulher, naquela época era tão pior, que certa vez o marido de Dona Maria a manteve presa em casa, os vizinhos sabiam do acontecido, ouviam da rua a pobre chorando e se reclamando da sina, mas todos mantinham um covarde e amedrontado silêncio cúmplice – e nada faziam (inclusive as autoridades municipais, que, numa cidade pequena, sempre sabem de tudo).

O único filho do casal, seu Francisco taxista, que deixou o Maranhão e hoje mora no Rio de Janeiro, sofreu muito junto com a mãe. Seu Francisco é agora o único que sabe o que de fato aconteceu naquele noite. O que sabemos, ou achamos que sabemos, é que naquela noite chuvosa o marido de Dona Maria chegou tão bêbado como sempre e a ameaçou com um facão. Ela levava para a pia uma panela com água fervente para escaldar uma galinha, quando o marido a puxou pelos cabelos; ele escorregou, puxando-a junto com a panela, que atingiu em cheio a parte superior do corpo dele, principalmente o rosto. Morreria dias depois, em consequência desse acidente.

Dona Maria ficaria para sempre livre do seu agressor, mas somos completamente incapazes de enxergar as marcas que a luta pela liberdade (e pela vida) lhe deixou...

Quando vejo alguém cantando louvores a um idílico passado, questiono sempre. No passado, as coisas eram bem piores, não tenho dúvida. No entanto, olhando para o hoje, o agora, o nesse instante, assombra-me ter que perguntar: então, é mau agouro, problema, sina ruim nascer mulher? Até quando?

Hoje, durante o exaustivo e pouco produtivo ensino remoto, uma aluna lembrou no grupo de whatsapp o dia em que quase cometia um infanticídio.

Como assim, Isadora?

Professor, eu vou passando e a peste de um menino, sem nem tamanho de gente: "e aí, gostosa?". Se eu pego aquele peste, nem sei o que seria capaz de fazer!

Risadas à parte, a raiva de Isadora procede.

Temos que fazer algo – e urgente. A solução passa pela educação, claro: educar esses meninozinhos antes que neles germine um alien grotesco-machista.

Dona Maria do Mingau morreu no momento mais crítico da pandemia e ninguém pôde ir ao seu velório.

Ela merecia uma estátua, bem como todas as mulheres que padeceram e, lamentavelmente ainda padecem, sob a brutalidade da violência doméstica e familiar. Gostaria de propor um projeto de lei nesse sentido: uma estátua para cada mulher assassinada. Seriam tantas estátuas, tantas homenagens póstumas com dinheiro do “erário público” – e tanta vergonha exposta pelas ruas do país – que, talvez, a solução viesse mais rápida.

Enquanto a solução não vem, requiescat en pace, Dona Maria do Mingau.

 

 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Bonito pra chover



O carro parou em frente à casinha.

Casinha simples, do interior. Até um dia desses uma tapera de taipa. Agora, de alvenaria. Mas ainda uma humilde casa de agricultores.

Do carro, saíram dois rapazes de vinte e poucos anos. O mais musculoso saiu falando alto.

– Seu Chico?

Da casinha, saiu um senhor de meia idade, moreno, pequeno, queimado de sol. Parecia surpreso, ou indeciso.

– Bota a máscara, Chico! – gritou lá de dentro Dona Mariana, sua companheira de vinte e cinco anos de vida em comum.

– A gente num tem Covid não, Dona Mariana – justificou-se o rapaz musculoso, fechando a porta do carro.

Seu Chico ficou sem ação, entre a porta da casa e o carro dos visitantes.

Foi quando apareceu uma moça usando uma máscara. Gabriela. Tinha dezoito anos, era bonita, pequena, morena, filha de Seu Chico e Dona Mariana – Toma a máscara, pai – e entregou a Seu Chico uma máscara.

– Cadê a máscara, Josué? – perguntou Gabriela ao rapaz musculoso. – E a tua, Álvaro? – dirigindo-se ao outro rapaz, até então mudo, e agora com um sorriso amarelo no rosto.

– Peraí, Gabi – Josué foi até o carro e voltou de máscara no rosto. Pela janela do carro, Álvaro também pegou sua máscara e a colocou na cara.

Gabriela entrou, aparentemente chateada.

– Vam’entrar – anunciou, por fim, Seu Chico.

Os visitantes sentaram num sofá remendado. Gabriela trouxe dois tamboretes. Ofereceu um ao pai e ela sentou no outro.

– Senta ali, Gabi – apontou Seu Chico para o sofá.

– Não... Tá bom aqui.

Dona Mariana chegou na sala, ainda enxugando as mãos no vestido:

– Oh, por que vocês num avisam? Pra mim preparar um almoço melhozim... Matar uma galinha...

– Precisa não, Dona Mariana, a gente tá indo ali na fazenda de tio Zeca e resolveu dar uma passadinha aqui – explicou Josué.

Três pintinhos apareceram para catar minúsculos farelos de comida pelo chão da sala.

– Tange esses pinto aí, Gabi – ordenou Dona Mariana.

Gabriela levantou-se e foi em direção aos pintinhos – Sai, sai... – e voltou a sentar.

Josué a observou com olhos de cobiça.

– Pois é... – improvisou Josué, sem assunto.

– Pois é... – repetiu Seu Chico.

– Quem morreu ontem foi Damasceno, vocês souberam? – falou Álvaro, repentinamente.

– Quem? – perguntou Seu Chico.

– Damasceno, ex-prefeito. Morreu ontem em São Luís, de covid.

– Só tinha cinquenta e poucos anos, ouvi dizer – comentou Dona Mariana.

– Cinquenta e dois – completou Josué.

– Eu vou fazer um cafezim, cês deem licença – anunciou Dona Mariana.

Josué passeou os olhos pela sala, cuja pintura estava nova.

– Ficou bom, num foi Seu Chico?

– Ave Maria, ficou uma joia.

Eles estavam se referindo à reforma da casa, ainda recente.

– Diga a seu pai que mês que vem eu vou lá, dar um tiquim.

– Tem pressa não, Seu Chico, deixe terminar essa pandemia.

Gabriela desviou o olhar para a janela. Aquele assunto a aborrecia. Seu namorado, Josué, era de uma família tradicional, que há décadas comerciava materiais de construção. A reforma da casa de Gabriela tinha sido custeada por Josué. Foi combinado que Seu Chico iria poder pagar aos poucos, quando sua condição econômica fosse favorável.

Se não estivesse de namoro com Josué, Gabriela não se sentiria no meio de um acordo comercial. Mas era assim que se sentia. Enquanto olhava pela janela da sala, meditava sobre essa incômoda situação.

– Gabriela, Josué tá falando com você! – Seu Chico “acordou” a filha, tocando em seu braço.

– Sim, o que foi que eu perdi? – perguntou Gabriela, anunciando seu retorno à realidade.

– Tô perguntando se as aulas já terminaram, Gabi – quis saber Josué.

– Não, mas tá perto. Mas eu já passei.

– Essa menina é muito intiligente – elogiou Seu Chico. – Ano passado ganhou uns prêmio na escola. A professora disse que ela escreve bem demais! Benza Deus!

– Tava pensando era longe! – insinuou Josué, indiferente aos elogios do pai à filha.

– Não, tava olhando o céu, como tá bonito pra chover – e, pela janela, Gabriela apontou as nuvens escuras, lá fora.

– Eita, que vai ser água! – surpreendeu-se Seu Chico, que até então ainda não tinha visto o temporal que se aproximava.

– Vai ter gente que vai já pra baixo da cama – disse Josué, sorrindo.

– Quem? – perguntou Álvaro.

– A Gabi. Ela morre de medo de chuva com relâmpago e trovão.

Gabriela olhou para o namorado, incomodada com o comentário sobre aquela fobia, que compartilhara em segredo com Josué.

Quando Maria Helena chegou, Josué não escondeu sua antipatia à amiga de Gabriela:

– Vixe Maria! – e virou o rosto na direção oposta. – Bora embora – e tocou a perna de Álvaro.

– Com licença, Seu Chico – disse Maria Helena, enquanto atravessava a salinha.

– Pode embocar...

Do interior da casa, Maria Helena chamou Gabriela.

– A gente tá indo, Seu Chico – Josué foi falando e levantando. – Até mais, Dona Mariana.

– Oxi, e essa pressa toda? O café! – gritou, da cozinha, Dona Mariana.

– É porque tá bonito pra chover e a gente quer ir antes da chuva. Tchau, Gabi, depois a gente se conversa – e Josué encostou o rosto no rosto da namorada.

Quando Dona Mariana apareceu na sala, enxugando, de novo, as mãos no vestido, Josué e Álvaro já corriam para o carro e a chuva, de fato, começava.

– Será que esse casório só sai depois que a covid passar? – perguntou Seu Chico. Mas enquanto o pai sorria, a filha, em silêncio ia para o quarto, onde Maria Helena a esperava.

– Não tem combinação com vocês, né? – perguntou Gabriela, referindo-se à evidente recíproca antipatia entre Josué e Maria Helena.

– Nem eu quero, Gabi.

– Mas vocês precisam se acertar. Se não, como é que eu fico nessa história? – perguntou Gabriela, enquanto a chuva estralava no telhado.

No fogão, Dona Mariana assuntou se o marido não estaria estranhando o namoro da filha.

– Hen-hein – concordou Seu Chico. – Eu perguntei pelo casamento.

– E ela, disse o quê?

– Nada, mas vou já perguntar de novo.

Alguns minutos depois, Maria Helena saiu do quarto.

– Já vai? – perguntou Dona Mariana.

– Vou, Dona Mariana, antes que esse toró deixe o caminho só aquela papa de barro liso – e saiu correndo, em direção ao início da estradinha do povoado.

– Obrigado, amiga! – gritou Gabriela, mas o som da chuva abafou seu eloquente agradecimento e ela voltou ao quarto.

 

Josué se casa comigo.

Nós vamos morar em São Luís. No apartamento de Josué. Lindíssimo. Novíssimo. Condomínio top. Já conheço, já me levou lá.

Temos um filho. Um menino lindo, chamado... Antônio, como meu vozim, o pai de mamãe, que eu amava muito.

No começo, Josué me traz flores, quando volta do trabalho. A pandemia continua. Com essa justificativa, ele diz pra eu não sair de casa, pra eu me proteger e proteger nosso filho.

Passo o dia cuidando dos afazeres domésticos, cuidando de Antônio e fazendo comidas gostosas pra Josué. Minha única diversão são livros, filmes, séries e redes sociais.

Um dia ele me pede pra ver minhas conversas no WhatsApp. Mostro. Ele passa meia hora com meu celular. Quando me devolve, excluiu vários contatos. A maioria, homens, ex-colegas de escola. A única mulher excluída é tu, Maria Helena.

Me revolto. E ele me fala do vício que as redes sociais causam. Quanto tempo estou passando no celular? Muito tempo, é verdade...

No outro dia, ele chega mais cedo do trabalho, não terminei o almoço ainda e estou vendo um vídeo no YouTube.

“De novo, Gabi? Eu sei como acabar com esse teu vício!” Toma o celular da minha mão, corro atrás, peço o celular de volta, mas ele arrebenta o aparelho na parede, corro pra pegar, ele corre também, nos abaixamos quase ao mesmo tempo e ele me afasta com uma cotovelada no rosto. Não vejo mais nada... Aliás, vejo... Do chão, eu vejo ele pegar nos braços nosso filho, que está chorando, e levar pra longe de mim...

Agora ele chega, liga a TV, enorme, e coloca num programa que acha que é do meu agrado. Pede desculpas. Fala da pandemia, medo da Covid etc. etc.

Descobriu a minha indiferença, mas pra ele, tanto faz. De noite, quando tento sair da cama, ele me puxa de volta, me derruba, monta em cima de mim... e me estupra.

Essa é a rotina agora. Da janela do apartamento, me “divirto” olhando a vida lá fora.

Mas, quando tá bonito pra chover, fico ainda mais triste, porque lembro de quando eu era criança na roça... Não tinha “tudo” que tenho hoje, mas – estranho, né? – eu era feliz...

Quando tava bonito pra chover e eu corria pra baixo da cama, vozim ia atrás de mim e dizia pra eu não ter medo, que a chuva podia até assustar, mas depois ela ia fazer a natureza florir...

Josué agora me fecha no apartamento e leva a chave. Quando digo que preciso levar nosso filho pra brincar no parquinho, ele me proíbe. A desculpa é a pandemia.

Chove quase todo dia. Quando é chuva forte, com muito relâmpago e trovão, corro pra debaixo da cama. Levo Antônio comigo. A gente fica bem abraçadinhos, lá em baixo. Josué chega. Sorri. Puxa Antônio de mim, diz que não vai criar filho frouxo como a mãe.

Dois dias de chuvas e ruas alagadas e relâmpagos e raios e trovões. Talvez por isso Josué esquece de fechar de chave a porta do apartamento. Quando descubro, enfio umas roupas numa mochila, procuro um guarda-chuva, não encontro, agasalho Antônio com três camisas e duas calças e saio.

Estou com meu filho no braço, no meio da tempestade. Ainda tenho medo. Mas preciso ficar viva pra garantir que meu filho também viva e cresça como um bom homem.

Estou fugindo, água nas canelas, em alguns trechos. As marcas da violência ainda estão por todo o meu corpo. Procuro uma delegacia especializada. Sei onde encontrar. Me preparei pra isso. Não volto mais para minha bela prisão, não quero mais ser torturada. Não posso deixar Josué impune.

 

 

Gabriela saiu do quarto com o celular na mão. Aproximou-se do pai, que tomava café, e colocou diante dele a tela do seu celular. Dona Mariana se aproximou:

– ‘Xeu ver também?!

– Vixe Maria! – balançou a cabeça Seu Chico. – Quem é essa coitada?

– Quem foi que fez uma maldade dessa? – completou Dona Mariana.

– Seu ex-futuro genro – respondeu Gabriela.

– Mentira!

– Verdade, mãe. Essa menina namorava com ele.

– Isso é mentira!

– Infelizmente, é verdade, Seu Chico. Além de fazer isso, ele ainda perseguiu ela depois. Ele tá proibido de se aproximar dela, a justiça proibiu.

– Então, casamento...

– Nem pensar, mãe!

E, depois de um tempo:

– Eu vou apanhar dele, vou viver presa num apartamento, mas um dia vou fugir com nosso filho, vou enfrentar uma tremenda tempestade e vou denunciar ele... E ele, então, vai ser enquadrado na Lei Maria da Penha... E sabe por quê?

Porque quando eu olhar pro céu bonito pra chover, eu não vou mais me esconder debaixo da cama!

E saiu, eufórica, toda sorrisos.

– Oxi... – monologou Seu Chico, sem entender direito.