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domingo, 31 de julho de 2022

A morte de Maria do Mingau

 


Dona Maria do Mingau morreu.

Foi ontem. Está nas redes sociais. No grupo da escola, todos os professores lamentamos. É que em nossas embaralhadas lembranças, nos vagões em que se confundem anos letivos, alunos, matérias, turnos e gestores da escola, só uma imagem continua a mesma lá fora: a de Dona Maria vendendo o seu mingau no intervalo das aulas.

Vendia, sempre séria, triste mesmo, desconfiada dos gracejos de alguns, atenta com a esperteza de outros, que às vezes, na base da conversa, tentavam conseguir algum desconto – centavos, que fossem, mas era tão ínfimo o lucro dela...

Muitos a achavam antipática. Em geral, os mais jovens, fossem seus fregueses ou colegas que tinham acabado de ingressar no magistério. Os mais velhos, como eu, conhecíamos a razão de sua tristeza e dávamos um desconto para o seu mau humor, aparente ou manifesto.

Dona Maria padecera muitos anos nas mãos de um marido violento e alcoólatra, naquele outrora em que não existia Delegacia da Mulher, nem lei Maria da Penha, nem o artigo 5o da Constituição, nem Constituição Cidadã...

Se hoje ainda tem gente que reluta em meter a colher na briga de marido e mulher, naquela época era tão pior, que certa vez o marido de Dona Maria a manteve presa em casa, os vizinhos sabiam do acontecido, ouviam da rua a pobre chorando e se reclamando da sina, mas todos mantinham um covarde e amedrontado silêncio cúmplice – e nada faziam (inclusive as autoridades municipais, que, numa cidade pequena, sempre sabem de tudo).

O único filho do casal, seu Francisco taxista, que deixou o Maranhão e hoje mora no Rio de Janeiro, sofreu muito junto com a mãe. Seu Francisco é agora o único que sabe o que de fato aconteceu naquele noite. O que sabemos, ou achamos que sabemos, é que naquela noite chuvosa o marido de Dona Maria chegou tão bêbado como sempre e a ameaçou com um facão. Ela levava para a pia uma panela com água fervente para escaldar uma galinha, quando o marido a puxou pelos cabelos; ele escorregou, puxando-a junto com a panela, que atingiu em cheio a parte superior do corpo dele, principalmente o rosto. Morreria dias depois, em consequência desse acidente.

Dona Maria ficaria para sempre livre do seu agressor, mas somos completamente incapazes de enxergar as marcas que a luta pela liberdade (e pela vida) lhe deixou...

Quando vejo alguém cantando louvores a um idílico passado, questiono sempre. No passado, as coisas eram bem piores, não tenho dúvida. No entanto, olhando para o hoje, o agora, o nesse instante, assombra-me ter que perguntar: então, é mau agouro, problema, sina ruim nascer mulher? Até quando?

Hoje, durante o exaustivo e pouco produtivo ensino remoto, uma aluna lembrou no grupo de whatsapp o dia em que quase cometia um infanticídio.

Como assim, Isadora?

Professor, eu vou passando e a peste de um menino, sem nem tamanho de gente: "e aí, gostosa?". Se eu pego aquele peste, nem sei o que seria capaz de fazer!

Risadas à parte, a raiva de Isadora procede.

Temos que fazer algo – e urgente. A solução passa pela educação, claro: educar esses meninozinhos antes que neles germine um alien grotesco-machista.

Dona Maria do Mingau morreu no momento mais crítico da pandemia e ninguém pôde ir ao seu velório.

Ela merecia uma estátua, bem como todas as mulheres que padeceram e, lamentavelmente ainda padecem, sob a brutalidade da violência doméstica e familiar. Gostaria de propor um projeto de lei nesse sentido: uma estátua para cada mulher assassinada. Seriam tantas estátuas, tantas homenagens póstumas com dinheiro do “erário público” – e tanta vergonha exposta pelas ruas do país – que, talvez, a solução viesse mais rápida.

Enquanto a solução não vem, requiescat en pace, Dona Maria do Mingau.

 

 

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