Estava um dia quente e abafado.
Minha camisa pregada no corpo, meu corpo pregado na bike.
Era a quarta entrega, já passava de meio-dia, e eu, brocado,
derretendo, tremendo de fome.
Puta ironia: entregando os bandecos pela cidade e eu nem um
copo d’água tinha bebido desde as primeiras horas do dia.
Sentei na pracinha, tinha uma escola perto, alguns sorrisos
escapavam dos uniformes.
Vi o carrinho de sorvete e chamei o homem. Comprei um sorvete
de coco. Foram dois meses, digo, minutos, no paraíso...
Enquanto eu corria pela cidade, derretendo em cima da bike, o
celular tinha tocado umas dez vezes.
Eu, derretendo, e o celular se desmanchando. Quando vou poder
comprar um novo? Só deus sabe.
Três ligações do meu irmão, oito de minha mãe. Retornei pra
ela.
Ave Maria, meu filho, atende esse celular!
E eu tive tempo? Mas que urgência é essa, dona?
Menino, tu passou no Enem!
Que que a senhora tá dizendo?
Tu passou, criatura! Tá aqui na internet.
Minha fala derreteu por alguns segundos... Mamãe ficou
apreensiva.
Francisco, tá me ouvindo? Alô? Alô?
Tô, tô ouvindo, tô ouvindo muito bem. E vou já praí. Só a
senhora mermo pra me dar tanta notícia boa! Beijão, chego já aí.
Beijos, meu filho, e parabéns!
Brigadu!!
Eu continuava derretendo, mas a vontade que deu foi de pagar sorvete pra toda aquela galera que ia passando pra escola...
Mas, tinha que encarar a realidade: não tinha grana
suficiente pra um gesto tão grandioso...
O mais importante era me manter em estado sólido e me
matricular na universidade.
E, como vocês estão me lendo agora, já devem ter deduzido que, apesar
do calor que fez naquele dia, inesquecível por vários motivos, o estado da
minha matéria continuou inalterado. Quanto ao meu estado de espírito, faz sol com temperatura amena...