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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Teoria histórico-cultural e aprendizagem contextualizada


A teoria histórico-cultural tem suas origens nos estudos de Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934). Procurando entender a estagnação em que a psicologia se encontrava no início do século XX, Vygotsky desenvolveu estudos que demonstravam a mediação social no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Para Oliveira (1997), três são os pilares dessa nova abordagem:

  • as funções psicológicas têm um suporte biológico, pois são produtos da atividade cerebral;
  • o funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais entre os indivíduos e o mundo exterior, as quais se desenvolvem num processo histórico;
  • a relação homem/mundo é uma relação mediada por sistemas simbólicos (OLIVEIRA, 1997, p. 23).

Ao estudar a relação entre o pensamento e a linguagem, Vygotsky expressou divergências em relação aos esquemas propostos pelos behavioristas e por Piaget. Para os behavioristas, o desenvolvimento da linguagem passa pelo discurso oral e pelo murmúrio até atingir o discurso interior. Para Piaget, o desenvolvimento ia do “pensamento autístico para o discurso socializado e o pensamento lógico através do discurso e do pensamento egocêntrico” (VYGOSTKY, s/d). As conclusões a que Vygotsky chegou mostraram que “a verdadeira trajetória de desenvolvimento do pensamento não vai no sentido do pensamento individual para o socializado, mas do pensamento socializado para o individual” (VYGOTSKY, s/d, grifo nosso).

Essa constatação permitiu a Vygotsky compreender que o pensamento não é formado com autonomia e independência, mas sob condições determinadas, sob a mediação dos signos e dos instrumentos culturais que se apresentam histórica e socialmente disponíveis. Assim,

[...] o processo de mediação, por meio de instrumentos e signos, é fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, distinguindo o homem dos outros animais. A mediação é um processo essencial para tornar possível atividades psicológicas voluntárias, intencionais, controladas pelo próprio indivíduo (OLIVEIRA, 1997, p. 33).

As experiências desenvolvidas por Vygotsky permitiram que ele colocasse em primeiro plano algo que a psicologia até então tinha ignorado: o papel fundamental da atividade infantil na evolução do processo intelectivo da criança: “este processo é desencadeado pelas ações da criança; os objetos com que esta lida representam a realidade e modelam os seus processos de pensamento” (VYGOTSKY, s/d, grifo nosso).

Os “sistemas de representação da realidade” (OLIVEIRA, 1997, p. 36) são socialmente estabelecidos, entre eles a linguagem, sistema simbólico básico que une todos os seres humanos. A interação social e a convivência com determinadas maneiras de agir e determinados produtos culturais é que “os indivíduos vão construir seu sistema de signos, o qual consistirá numa espécie de ‘código’ para decifração do mundo” (OLIVEIRA, 1997, p. 37).

Outro conceito inovador proposto por Vygotsky é o de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Segundo Oliveira (1997), Vygotsky observou existirem atividades que podem ser realizadas sem a ajuda de outras pessoas, por corresponderem a conceitos já internalizados pelo indivíduo, ao que denominou nível de desenvolvimento real. Por outro lado, o nível de desenvolvimento potencial possibilita-nos realizar algumas tarefas com a ajuda de outras pessoas. A Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) corresponde à

distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1984, P. 97, apud OLIVEIRA, 1997, p. 60).

É na ZDP que deve atuar o educador, procurando colaborar para a viabilização de processos que estão amadurecendo nos alunos. Assim, não basta submeter o aluno a condições ideais de estudo e esperar que ele faça seu próprio caminho; o educador deve procurar intervir sempre que necessário à elevação da qualidade da aprendizagem. Assim, “a mediação do professor é imprescindível, pois o sujeito não se apropria do significado apenas por estar inserido em ambientes propícios, sejam eles alfabetizadores, letrados ou científicos” (GALUCH, SFORNI, 2009, p. 123).

Os trabalhos de Vygotsky deram origem a uma linha de pensamento conhecida como teoria histórico-cultural. Sob a influência de Vygotsky desenvolveu-se a escola de psicologia soviética, que aprofundou a abordagem de que o homem não pode ser estudado separado das condições objetivas (históricas, socioculturais) em que vive, constituindo o que Vygotsky denominou psicologia social. Como vimos, para Vygotsky, as marcas da existência social não estão apenas nas coisas, mas na mente do ser humano, que elabora conceitos a partir dos signos com os quais se relaciona.

Os pesquisadores da teoria histórico-cultural deram prosseguimento ao trabalho de Vygotsky, principalmente dois dos seus discípulos: Alexander Romanovich Luria (1902-1977) e Alexei Nikolaievich Leontiev (1904-1977). Luria desenvolveu pesquisas neuropsicológicas, na busca de identificar os processos mentais resultantes da atividade humana, ou seja, da relação dos seres humanos com os objetos sociais com os quais interagem, para Vygotsky, “um dos principais mecanismos a serem compreendidos no estudo do ser humano (OLIVEIRA, 1997, P. 38), pois constitui um “processo em que as atividades externas e as funções interpessoais transformam-se em atividades internas, intrapsicológicas” (OLIVEIRA, 1997, p. 38).

Em seus trabalhos, Luria identificou três unidades de funcionamento no cérebro: a unidade para regulação da atividade cerebral e do estado de vigília, a unidade para recebimento, análise e recebimento de informações e a unidade para programação, regulação e controle da atividade (OLIVEIRA, 1997, p. 86-87). Para Luria (2000), um dos princípios básicos da psicologia materialista consiste em compreender que

os processos mentais dependem de formas de vida ativas em um ambiente apropriado. Essa psicologia também assume que a ação humana altera o ambiente, assim como a vida mental humana é um produto de atividades continuamente novas, manifestas na prática social (LURIA, 2000, tradução nossa).

Leontiev é o principal formulador da Teoria da Atividade. Essa teoria tem como foco a afirmação de Vygotsky de que “o ponto chave do desenvolvimento social e humano constitui o conceito de atividade” (apud PATINO GARZON, 2007, tradução nossa). Na Universidade de Helsinki, na Finlândia, funciona o Centro para a Teoria da Atividade e Pesquisa de Trabalho Desenvolvimental, fundado em 1994 e dirigido por Yrjo Engeström, um dos mais influentes teoricos da teoria histórico-cultural (LIBÂNEO, FREITAS, s/d).

Com base nesse conceito, observa-se que “a cultura humana transcorre, através da atividade, como processo que mediatiza a relação entre o homem e sua realidade objetiva. Por meio dela, o homem modifica a realidade e se forma e transforma a si mesmo” (PATINO GARZON, 2007, tradução nossa). Leontiev descreve como a mediação está presente desde cedo nas atividades humanas:

A situação do desenvolvimento do indivíduo humano revela seus traços especiais mesmo nos estágios mais precoces. Seu princípio reside no caráter de mediação das conexões da criança com o mundo circundante. No início, as conexões biológicas diretas, criança-mãe, são logo mediadas por objetos: a mãe alimenta a criança com uma tigela, veste-a com roupas e, para diverti-la, manipula brinquedos. Por outro lado, as conexões da criança com as coisas são mediadas pelas pessoas que a circundam: a mãe coloca a criança perto das coisas que lhe são atraentes, providencia para que fiquem perto dela, ou, talvez, tira-as dela. Numa palavra, a atividade da criança aparece, cada vez mais, como a realização de suas conexões com os seres humanos através das coisas, e conexões com as coisas através dos seres humanos (LEONTIEV, 2000, grifo nosso).

“Na psicologia animal o objeto não se distingue das necessidades do ser que age sobre esse objeto” (DUARTE, 2004, p. 52). Diferente da atividade animal, em que há uma vinculação direta entre o motivo e o objeto da atividade, na atividade humana nem sempre esse laço fica evidente e atividade e objetivo parecem estar separados. Leontiev, procura, assim diferenciar atividade e ação. Dá como exemplo a caça coletiva entre grupos pré-históricos, atividade composta por várias ações. Uma dessas ações fica a cargo de algumas pessoas do grupo que exercem a função de “batedores”, cuja missão seria a de espantar os animais na direção dos integrantes do grupo que têm como função abater a caça. São ações diferentes (espantar os animais, abater), coordenadas para o sucesso da atividade. Como ressalta Duarte (2004, p. 53), se desconhecemos a lógica da atividade, até estranhamos a ação dos membros do grupo que espantam os animais em vez persegui-los. Observando a forma como se organizam as atividades humanas, Leontiev constata que “a capacidade de conscientemente formular e perseguir objetivos é um traço que distingue o homem dos outros animais” (OLIVEIRA, 1997, p. 96).

Leontiev diferencia ainda entre o significado e o sentido da ação:

Usando os termos de Leontiev, ao conteúdo da ação, isto é, àquilo que constitui seu objeto, vincula-se o “significado da ação”, ou seja, o significado da ação é aquilo que o sujeito faz, é a resposta à pergunta: O que o indivíduo está fazendo? Mas a consciência humana, segundo Leontiev, trabalha com as relações entre o significado e o sentido da ação. O que seria o sentido da ação? Para Leontiev o sentido da ação é dado por aquilo que liga, na consciência do sujeito, o objeto de sua ação (seu conteúdo) ao motivo dessa ação (DUARTE, 2004, p. 55).

Transpondo as considerações acima para a realidade escolar, podemos deduzir que muitos alunos são levados à alienação pela “incapacidade de perceber o objetivo de uma atividade” (LEFFA, 2005, p. 24). Logo,

Em termos do objetivo, tentou-se mostrar que o aluno, da mesma maneira que o operário numa grande linha de montagem, corre o risco de alienar-se da atividade na qual está envolvido quando não consegue estabelecer a relação entre o que faz num determinado momento e o resultado final a que pretende chegar (LEFFA, 2005, p. 29).

Como disse Elhammoumi (2002), Vygotsky morreu cedo e não teve tempo de sistematizar o seu pensamento, como fez Piaget, que viveu até os oitenta e quatro anos. Apesar disso, Vygotsky deu uma contribuição fundamental para o avanço da psicologia, com profundos reflexos na educação, como mostram algumas das perspectivas aqui apontadas. Para Rambusch (2006), “os pesquisadores precisam considerar a aprendizagem e a apropriação de conhecimentos em termos de interação e construção de significados dentro de um contexto sociocultural” (RAMBUSCH, 2006, tradução nossa), como se propõe aqui em relação ao uso do blog, com a expectativa de que a reorganização intrapsicológica possa ser detectada no momento de sua gênese.

Outro importante psicólogo russo, Piotr Galperin (1902-1988), também colaborador da teoria histórico-cultural e da teoria da atividade, apontava a necessidade de se conhecer como a atividade mediada social e culturalmente se transforma em atividade mental (RAMBUSCH, 2006). Sua abordagem indica que a interação social com outras pessoas e o uso de diferentes tipos de ferramentas é condição necessária para o desenvolvimento de todas as formas de atividade mental (RAMBUSCH, 2006). Em suas palavras, sinteticamente a relação sujeito-objeto pode ser representada como “1) atividade generalizada que conduz a 2) novas relações perceptivas que constroem 3) a imagem (psíquica)” (GOLDER, 1986, p. 45).

A contribuição de Galperin possibilita desenvolver um roteiro didático que organize a atividade cognitiva do estudante, e que pode ser aplicada à aprendizagem contextualizada com o blog, cujo passo a passo é descrito abaixo:

1. Se planejam as atitudes iniciais do sujeito em direção às metas do processo e a uma situação concreta de ensino e aprendizagem.

2. Se gera a orientação do sujeto mediante um sistema de desenhos, diagramas e signos externos guiados, com a finalidade de que este desempenhe a ação.

3. O aprendiz, orientado pelas representações materializadas, começa a resolver diferentes tarefas pré-definidas.

4. Plano de conversação externa socializada: o aprendiz compartilha verbalmente uma reflexão sobre sua ação, a fim de tomar consciência acerca de suas ações na solução de problemas.

5. Se forma a reflexão verbal interna sobre a ação, com a finalidade de interiorizá-la.

6. Se interioriza a ação passando ao plano mental e se “automatiza”, de tal manera que se converte em parte da vida psicológica do sujeto.

(GALPERIN, 1987, apud PATINO GARZON, 2007 )

Exempo de atividade contextualizada pode ser desenvolvida na criação de blogs, uma vez que o blog representa uma possibilidade de intenso intercâmbio escrita-leitura e intervenção na realidade social (práxis). Na prática do blog entra em jogo toda a riqueza semiótica da Internet, com a leitura e a escrita constituindo campos de ação e reflexão, numa práxis pedagógica que se adéqua ao “modelo de ensino proposto por Galperin” (REZENDE, VALDES, 2006), uma vez que nele “o conhecimento é obtido por meio da ação, na medida em que o sujeito, para resolver a situação-problema, tem que aprender a empregar determinados conceitos e, paralelamente, a observar a influência destes conceitos sobre o contexto em que a ação está inserida” (REZENDE, VALDES, 2006).

REFERÊNCIAS

DUARTE, Newton. Formação do indivíduo, consciência e alienação: o ser humano na psicologia de A. N. Leontiev. Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 44-63, abril 2004.

ELHAMMOUMI, Mohamed. To Create Psychology’s Own Capital. 2002. In: Laboratory of Comparative Human Cognition. Disponível em . Acesso em 12 nov. 2010.

FEBLES ELEJALDE, María. Acerca de nuestra herencia del enfoque histórico-cultural. Rev. cuba. psicol., La Habana, v. 14, n. 2, 1997. Disponível em . Acesso em 21 jan. 2011.

GALUCH, Márcia Terezinha Bellanda, SFORNI, Marta Sueli de Faria. Aprendizagem conceitual e apropriação da linguagem escrita: contribuições da teoria histórico-cultural. Est. Aval. Educ., São Paulo, v. 20, n. 42, p. 111-124, jan./abr. 2009.

GOLDER, Mario. Reportajes contemporaneos a la psicologia sovietica. Buenos Aires: Editorial Cartago, 1986.

LEONTIEV, Alexei N. Atividade, consciência e personalidade. In: Arquivo Marxista na Internet, 2000. Disponível em . Acesso em 04 jan. 2011.

LIBÂNEO, José Carlos, FREITAS, Raquel A. M. da M. Vygotsky, Leontiev, Davydov – três aportes teóricos para a teoria histórico-cultural e suas contribuições para a didática. In: Sociedade Brasileira de História da Educação. Disponível em . Acesso em 11 out. 2010.

LURIA, A. R. The problem. 2000. Marxists Internet Arqchive. Disponível em . Acesso em 10 jan. 2011.

PATINO GARZON, Luceli. Aportes del enfoque histórico cultural para la enseñanza. Educ. educ., Chia, v. 10, n. 1, June 2007. Disponível em . Acesso em 31 dez. 2010.

OLIVEIRA, Marta Khol de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1997.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

____________________ Pensamento e linguagem. In: Arquivo Marxista na Internet, s/d. Disponível em . Acesso em 04 jan. 2011.

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RAMBUSCH, Jana. (2006) Situated Learning and Galperin’s Notion of Object-Oriented Activity. In: R. Sun (Ed.) Proceedings of the 28th Annual Conference of the Cognitive Science Society, 1998-2003. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum.

REZENDE, Alexandre; VALDES, Hiram. Galperin: implicações educacionais da teoria de formação das ações mentais por estágios. Educ. Soc., Campinas, v. 27, n. 97, Dez. 2006. Disponível em . Acesso em 31 dez. 2010.


Publicado originalmente no blog Estudando Vigotsky:

http://www6.ufrgs.br/psicoeduc/gilvieira/