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domingo, 19 de abril de 2020

O Clube



Para chegar ao Clube, tinha que sair da BR, entrar no primeiro povoado, atravessar o segundo e parar no terceiro. Era ali. O clube se chamava simplesmente “O Clube”. 
Sua história começou quando Seu José chegou do Piauí; trazia uma sanfona e muita saudade do seu velho pai, sanfoneiro dos bons, maltratado pela vida, que morreu desgostoso porque o povo não apreciava mais as músicas boas do passado, dizia ele. Foi pensando na tristeza do seu pai, que Seu José colocou na cabeça que tinha que abrir um clube, com um sanfoneiro, aos sábados e domingos, tocando ao vivo os mais belos baiões de Luiz Gonzaga.
Logo que chegou ao povoado, Seu José conheceu Amparo. Era uma época calma, lembraria depois Seu José, uma época em que as pessoas ainda prestavam atenção nos animais, ainda admiravam ver uma borboleta ou um beija-flor voando, hoje não, só prestam atenção na vida alheia, resmungava ele.
Como os pais da moça observaram que Seu José era trabalhador, permitiram o namoro. E, de fato, os pais de Amparo não estavam enganados, pois Seu José era tão trabalhador, que jamais tivera tempo para “outras coisas”: Seu José nunca tivera uma namorada. Amparo foi, portanto, seu primeiro e único amor, pois se casaram e, pelo que se sabe, Seu José foi sempre fiel à esposa. 
Em casa, Seu José abriu uma pequena mercearia. Mas logo descobriu que para abrir o clube teria que trabalhar muito. Primeiro, o lugar. Pensou numa casinha, perto da que comprara para morar com Amparo. Era uma casa simples, de barro e palha, como muitas que ainda hoje se vê pelo interior do Maranhão. A dona era uma viúva que gostava de tomar umas cachaças (mas que ninguém critique a pobre velha, pois não somos nós que estamos na sua pele para saber o que é criar quatro filhos homens sem o marido ao lado).
Seu José comprou a casinha. Precisava reformá-la. Mas, com qual dinheiro? Pois a família crescera, tinham agora duas filhas, Ester e Isabel. Foi quando decidiu sair pelo mundo, já que nem a cidade – muito menos o povoado – oferecia emprego que desse para um pai de família sustentar sua prole.
Arriscou-se em cidades perdidas na fronteira norte do Brasil. Costumava telefonar aos domingos. Trabalhou bastante, adoeceu, por pouco quase morria (a família nunca soube) e, cansado, dois anos depois, voltou para casa. Queria muito comprar um carro, mas não esquecera a ideia do clube. A casinha estava mudada, Amparo ajeitara algumas coisas, conforme Seu José pedia, sempre que ligava do Amazonas, mas para se transformar nO Clube, ainda precisava de uma boa reforma.
Empregando dinheiro e trabalho, Seu José levantou O Clube, cuja inauguração foi no mesmo dia do batizado do seu terceiro filho, Homero. Foi um dia de muitas alegrias para Seu José e Amparo. Mas teve a história das perguntas, que, até hoje, quem viu não consegue esquecer. Um bêbado, que não era do povoado, mas de um povoado vizinho, cismou que “O Clube” não era nome para um clube festivo. Seu José declarou que não tinha satisfação para dar a ninguém, muito menos a um bêbado. “Desculpe”, disse o bêbado, “eu não queria ofender ninguém”.
Mas o que o mais o irritou e que o deixou passando mal foi quando alguém, se aproveitando da ocasião, perguntou, incógnito na multidão: “E Homero, de onde foi que saiu esse nome?”. “Quem é que quer saber, quem é?”, perguntava Seu José de punhal na mão. Foi uma correria, mas os mais chegados conseguiram deter Seu José. Todo mundo estranhou aquilo, não estavam acostumados com aquele comportamento descontrolado e violento, Seu José não costumava agir assim. Impediram uma desgraça, mas Seu José não estava bem. Foi levado para casa; Amparo ficou muito preocupada.
Pelo que constatamos, as pessoas do povoado não conheciam Homero, o grego, daí a pergunta. Mas a irritação de Seu José provinha também do fato de que Amparo já havia feito a mesma pergunta sobre a origem do nome Homero e porque Seu José achava que o filho devia ser batizado com aquele nome. Seu José desconversou, com ignorância.
O que ninguém sabia – e que Seu José não disse nem iria dizer, para não preocupar a família – é que seu José quase morrera de malária, no Amazonas, e fora tratado por um enfermeiro que se chamava Homero. Aquele homem havia salvado sua vida, por isso Seu José o remunerou muito bem. Mas fez mais do que isso, deu ao filho o nome do enfermeiro. Seu José também não conhecia Homero, o grego.
O Clube funcionava nos finais de semana e, embora tocasse a boa música nordestina que Seu José costumava ouvir na infância, não foi possível contratar um sanfoneiro. As festas animavam as pessoas do povoado, as dos povoados vizinhos e gente que vinha de longe. Contudo, Amparo reclamava-se que o clube só trazia dor de cabeça para Seu José, que de vez em quando tinha que apartar brigas e evitar tragédias. 
Numa delas, impediu que um vizinho ciumento atirasse num viajante que por ali passava. A bala, que tinha como destino o viajante, atingiu o pé de Seu José. O vizinho que dera o tiro fugiu. Seu José foi levado para o hospital da cidade. 
No dia seguinte recebeu a visita de Amparo, Ester, Isabel e Homero. A família vinha acompanhada do viajante salvo por Seu José. Inicialmente Seu José não gostou muito da presença do homem ali, achava que ele já devia estar bem longe, pois não se deve brincar com marido ciumento. Mas o homem era muito simpático e quis deixar dinheiro com Seu José, para arcar com as despesas do tratamento. Orgulhoso, Seu José recusou. “Eu faço questão, vou dar o dinheiro para sua esposa guardar, eu sei que o senhor não vai se levantar correndo daí, pra me impedir”. 
Homero sorriu, achou engraçado as palavras do homem e o jeito como ele falou. O viajante afagou a cabeça de Homero. “Tô certo ou não tô, garoto?”, perguntou o viajante a Homero. O garoto balançou a cabeça, afirmativamente. “O nome dele é Homero”, disse Ester. “Homero?”, perguntou o viajante. “Nome de filósofo, filósofo grego”. Amparo e as filhas –e Homero também – olharam para Seu José. “É; nome de filósofo”, disse Seu José sem muita certeza. Era a primeira vez que Homero ouvia a palavra filósofo.
Depois que saiu do hospital Seu José entrou num período de tristeza e reavaliação dO Clube. “Meu amor, o que é que você tem?”, perguntava, carinhosa, Amparo. “Você tem razão, Amparo, O Clube tá me dando muito trabalho”. Não sabia se ainda o tocaria pra frente. Foi envolvido em dúvida e tristeza que Seu José morreu. Uma morte triste, como são as mortes inesperadas daqueles que ainda fazem muitos planos. Sofreu um ataque cardíaco. Foi levado ao hospital, mas o médico nada pôde fazer.
Amparo fechou o clube. Alguns anos depois, vivia de uma minguada pensão, as filhas se casaram e Homero foi tentar a sorte em Brasília. Enquanto isso, várias pessoas tentaram comprar o clube, mas Amparo não vendeu, pois dizia que antes de morrer, Seu José só tivera tempo de pedir duas coisas: um beijo e que ela não vendesse O Clube. O nome “O Clube” ainda estava pintado na frente, como lembrança do desejo do seu marido.
Depois de três anos trabalhando na construção civil, morando numa república, com estudantes que conhecera lá, fazendo boas amizades (em sua própria avaliação) e frequentando bares, Homero voltou para casa e resolveu reabrir O Clube. A mãe e as irmãs foram contra. Homero explicou: não seria um clube de festas, mas um clube filosófico. “E o que é que faz um clube filosófico?”, perguntou João, o marido de Isabel. “Vocês vão ver”, foi a enigmática resposta de Homero (talvez enigmática até mesmo para ele). 
E assim O Clube foi reaberto. Embaixo das palavras “O Clube”, foi escrito “da filosofia”. No novo clube participavam dois amigos de Homero, de quando ele era criança, os outros sete eram adolescentes, a maioria dos quais Homero não conhecia. Todos eram homens. Dez pessoas, contando com Homero. 
Na primeira reunião, foi definida qual seria a principal missão do clube. Para Homero, O Clube deveria servir para abrir as mentes das pessoas para a vida. “Maneiro”, disse Tiago, um dos participantes. Paulo achou que O Clube deveria mudar o nome para “The Club”, ficaria “mais chique”. Marcos questionou essa ideia, pois segundo ele, devemos “valorizar mais a nossa língua brasileira”. “Tô gostando”, disse Homero. “É pra isso mesmo que O Clube deve servir”, completou Homero. “Pra quê?”, perguntou Marcos. “Pra discutir ideias”.
Depois de a ideia do nome ter sido bem discutida, iam colocar em votação, mas Homero lembrou que não se cogitava a mudança de nome, pois sua mãe não permitiria que se apagasse da frente o nome criado pelo seu pai. 
“E mulher?”, quis saber Tiago, “nosso clube tem que ter mulher!”. Claro, concordaram todos. “Mas O Clube não é para a gente pensar sobre as coisas?”, perguntou Paulo. “É”, disse Homero. “Pois é”, completou Paulo, “mulher não sabe pensar direito não”. Houve uma nova discussão, alguns achavam que as mulheres pensam tanto quanto os homens e vice-versa, outros diziam que as mulheres colocam os sentimentos acima da razão.
Pediram a opinião de Homero. “Teve um tempo que a igreja católica dizia que a mulher não pensava, era considerada um animal inferior; mas hoje não, hoje se sabe que não existem diferenças entre homens e mulheres...”, tentou explicar Homero, até ser interrompido por Paulo: “não existe diferença? Rapaz, já sei que tu não conhece mulher não”, enfatizou Paulo. “Não existe diferença em relação ao ato de pensar, mulheres e homens têm a mesma capacidade de pensar”, completou a explicação Homero. “Entendeu, seu burro?”, perguntou Tiago para Paulo. Os outros riram. Homero pediu silêncio. 
“Ninguém deve chamar o outro de burro, entenderam?”, perguntou Homero, com voz alterada. “Não existem pessoas burras, existem pessoas que não tiveram a sorte de conhecer as coisas, para poderem pensar melhor”. Todos se calaram. “A gente tá esquecendo a questão das mulheres”, voltou a lembrar Tiago. “Vamos fazer uma festa pra inaugurar O Clube, aí a gente chama uns filés”, propôs Paulo. “Uma festa não; um almoço”, sugeriu Homero. “Almoço?”, perguntaram alguns deles. “Sim”, respondeu Homero, “nós temos que ser diferentes; festa é uma coisa muito manjada”. Fez-se silêncio. 
“Brevemente teremos mulheres em nosso clube”, disse Homero. “Então vamos fazer esse almoço”, entusiasmou-se Tiago. Ainda conversaram sobre outras coisas, enfim se ouvia “tchau”, “até amanhã” e essa foi a primeira reunião dO Clube da Filosofia.
Durante certo tempo O Clube fez algum sucesso. Algumas garotas aproximaram-se, uma delas chegou até a fazer parte da diretoria, mas o contraste entre as muitas discussões e as poucas realizações fez com que aos poucos O Clube fosse minguando, até ficar somente Homero. 
Finalmente, ele desistiu e, apesar dos apelos da mãe e das irmãs, partiu para São Luís.
Houve um tempo em que, necessitada de dinheiro, Amparo alugou o prédio para a Igreja do Venerando Jesus. No entanto, ao lado do nome da igreja, lá estava: “O Clube” (uma exigência de Amparo).
Sou testemunha disso. Ontem, voltava de São Luís com um amigo comerciante e ele teve que visitar uns clientes em alguns povoados. Estávamos num desses povoados e enquanto ele conversava com um cliente, fui beber um copo de água numa casa próxima; parei bem em frente aO Clube. O nome está lá, do mesmo jeito como foi pintado por Seu José, décadas atrás. Quanto a sua história, são poucos, como eu, que a conhecem tão bem.

Do livro "Histórias exemplares: para levar no bolso", 2015.

Imagem de domínio público, disponível no site pixabay.com. 

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