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sexta-feira, 10 de abril de 2020

Mármore



Seu João não lembrou que tinha algo de especial para comemorar naquela data. Também, como pudera? Os canais de TV transmitiam a decisão, na câmara dos deputados, sobre o impeachment da presidenta Dilma. Seu João votara em Dilma, torcia por ela e acreditava que o impeachment representava uma armação golpista, um conchavo entre os poderosos, para afastar a presidenta e prejudicar os pobres. “Os barão é que vão mandar agora”, protestava Seu João diante da TV, enquanto deputados seguravam placas “tchau querida” e repetiam a monótona e previsível cantilena de que estavam votando pelo impeachment em nome de deus, da família, etc., etc. 
“O pobre vai ficar sem proteção”, repetia Seu João, balançando a cabeça. Como seu marido, Dona Maria também acreditava nessa profecia triste. Mas, diferente de Seu João, Dona Maria não esquecera que, mesmo sendo aquele um domingo atípico, tinha algo a comemorar: os trinta e nove anos de casamento. Isso mesmo: há trinta e nove anos, seu João e Dona Maria tinham se unido em matrimônio, jurando fidelidade até que a morte os separasse. 
Seu João monologava com a TV, irritado com os políticos. “Isso é uma palhaçada! Esses fi de rapariga!”, repetiu ao longo do domingo. Dona Maria, mais calma, só balançava a cabeça. “Já foi tudo combinado entre eles”, analisava, sábia, enquanto levava o bolo ao forno. 
Fez um bolo com todo carinho para comemorar as bodas. Teve que levá-lo à sala, pois Seu João não saía do sofá, mesmo depois de a TV anunciar que já estava confirmado o encaminhamento do impeachment ao senado. 
“O dia de hoje é muito importante pra nós”, disse Dona Maria, enquanto oferecia bolo e café a Seu João. 
“Importante pra todo brasileiro”, ressaltou Seu João, pegando um pedaço de bolo, com os olhos ainda vidrados na TV e sem atentar que ele e Dona Maria falavam de coisas distintas. “’Tão sepultando a democracia, sem choro nem vela”, completou Seu João. 
“Não, João”, corrigiu Dona Maria, “eu tô falando é de nós dois.”
“Pois é”, disse Seu João, ainda com o sentido em outro rumo, “se a Dilma sair, nós vamos perder o nosso aposento.”
“Hômi! Fala alguma coisa que preste!”, implorou Dona Maria. 
“Oxi, e é culpa minha?”
“E sobre nós, tu diz o quê?”
“Vamo se pegar com Deus, viu? Se esse Temer assumir, ele vai ser o cara daquele filme, o exterminador do futuro: vai acabar com o futuro de tudo que é póbi", respondeu Seu João. 
“Aí, meu Deus!", balançava a cabeça Dona Maria, diante do fracasso de suas infrutíferas insinuações. 
“João, que dia é hoje?”, persistia Dona Maria em sua solitária maiêutica. 
“17 de abril de 2016, um dia triste pra democracia brasileira; triste não... O que é que é muito muito mais que triste?”
Dona Maria se afastou, desiludida. Não teve jeito. Seu João não lembrara do aniversário de casamento. 39 anos... Bodas de quê? “Sabe de uma coisa? Vou mais atrás disso não”, disse para si mesma. Durante o restante do dia ficou surda e muda – para Seu João.
“Maria, pega um café pra mim aí.” Silêncio. Nada de café. 
Seu João foi à cozinha, pensando que Dona Maria não o ouvira por estar no quintal, mas ela estava lá, na pia. “Oxi, não me ouviu não, Maria?” Nenhuma resposta. Seu João a encarava; Dona Maria o ignorava. “O que foi? “Agora eu vi!!”, revoltava-se Seu João. 
Procurou a janta; não tinha comida nas panelas. “Minha véia, o que tá acontecendo? Justo num dia como hoje!” Dona Maria continuava mouca. No seu silêncio, recordava tudo o que já tinham passado juntos. Eram lavradores, se conheciam desde a adolescência na roça. Tiveram duas filhas, agora bem casadas, graças a Deus. E hoje João não lembrava mais nem o dia em que tinham se unido, perante Deus e a sociedade. 
“Maria!”, insistia Seu João, ansioso pela voz da mulher. 
Dona Maria terminou de lavar as coisas, foi ao quarto, trocou de roupa e ficou toda arrumada, como se fosse para a missa – foi o que pensou Seu João. “Oxi, Maria, pelo que eu saiba, tem missa agora não.”
Dona Maria nada disse. Caminhou até a porta. “Maria, tu vai pra onde?”
Ao abrir a porta, Dona Maria virou-se para Seu João. 
“Seu João”, falou Dona Maria com excesso de formalidade, “eu quero que o senhor saiba que hoje é o nosso aniversário de casamento. 39 anos. Bodas não-sei-nem-de-quê, nem quero mais saber. Foi na data de hoje que nós nos casamos, 39 anos atrás".
“Eu tô lembrado, abestada!”, tentou se safar Seu João. “Lembrou nada! Oh coisa feia numa pessoa velha é a mentira!”, disse Dona Maria, com toda naturalidade. “Rapaz, me respeite”, disse Seu João, se sentindo insultado. Dona Maria deu as costas e saiu: “Vou pra casa de minha filha”, falou, de costas, nem aí pra Seu João. “Oh presepada”, ironizou Seu João, com Dona Maria já na rua. 
Depois que Dona Maria saiu, seu João se sentou no sofá e desligou a televisão. O que dera em Dona Maria? Tinha culpa de não ter se lembrado da data, num dia como aquele, em que o destino do país estava em jogo? Oh criatura incompreensiva, se comportando como criança! Quem já vira uma coisa daquela? “É assim, é? Pois peraí!”, Seu João se levantou, vestiu a calça e a camisa de ir para a missa, se perfumou e saiu. 

Júlia recebeu a mãe em casa, embora não concordasse com a decisão que tomara. “Dessa vez, a senhora exagerou, a senhora não é mais uma adolescentezinha, nem papai. E ele – tá com a cabeça na política, a senhora tem que entender, ele tá preocupado; e, aqui pra nós, com razão.”
Dona Maria não demonstrava arrependimento. 
Júlia estava conversando pelo celular com Cristina, a irmã mais velha, que morava em outra cidade, contando a novidade, quando bateram na porta. Fernando, esposo de Júlia, foi abrir. Um PM segurava o braço de Seu João. Ao ver aquilo, Júlia se despediu rápido da irmã e correu para a porta.
“Papai, o que é isso?”
Seu João, visivelmente bêbado, olhava para o chão e balançava nas pernas. 
“Dona Júlia, Seu João aprontou!”, disse o policial. 
“O que foi que ele fez?”, perguntou Júlia, angustiada. 
“A gente foi buscar ele no cabaré da Augusta. Pegou uma briga lá, por causa de uma dívida. “
“Uma dívida?" E, repetindo a pergunta, como para se certificar de que ouvira direito: “Uma dívida, papai?”
“Quer dizer: só não pegou uma briga porque – a senhora deve conhecer – Nonato da Borracharia não quis; se não, ele tinha acabado com Seu João. “
“Dívida de quê, papai?”
Seu João continuava mudo, o PM era seu porta-voz:
“Uma aposta. A votação do impeachment. Seu João apostou com Nonato, perdeu e não queria pagar.”
“Nem pago; aquele negócio lá em Brasília foi tudo armação, foi roubo”, disse Seu João, com voz de bêbado. 
“O senhor fique quieto aí”, repreendeu o PM, impaciente. 
Júlia encarava o pai com os olhos de uma mãe que encara o filho que aprontou na escola. 
“Pronto. Tá entregue. A senhora não deixe ele sair”, disse o PM e se dirigiu à viatura, onde outro PM o esperava. 
“Vamos entrar, Seu João”, falou Fernando, o genro, pegando no braço de Seu João, mas este deu um safanão, se afastou e começou a relinchar: “In-on! In-on! In-on! Tudo cavalo, burro, jumento! Tu também, policial, tudo cavalo, burro, jumento!“, gritava Seu João no meio da rua. 
“Pega ele, Fernando, se não, ele vai ser preso!”, implorou Júlia ao marido, o qual correu, segurou Seu João e o arrastou para dentro de casa. Dona Maria estava de pé, na sala, ouvindo tudo, aparentemente calma. 
“Vá deitar, mamãe; a gente dá um jeito nele.”
No dia seguinte, logo de manhã, Júlia teve uma longa conversa com o pai. Dona Maria, que passava pela sala, não quis ouvir. Depois de dar uns conselhos a Seu João, Júlia ligou para Cristina, passou o celular para o pai, que ouviu duras reclamações da filha mais velha, que morava no Sul. Seu João só ouvia, sem nada dizer, como um menino que não consegue justificar suas peraltices. Depois que desligou o celular, Seu João estava triste e pensativo. 
“Fica assim não, pai”, disse Júlia, carinhosa. “Vamos combinar umas coisas” – e pegou o pai pela mão e o levou para o quintal. 

Dona Maria continuava seu protesto silencioso. Quando almoçava, ao lado do genro, Júlia chegou de mansinho, com Seu João. 
“Mamãe, papai quer falar com a senhora. Eu vou logo dizendo: ele quer dar um presente pra senhora. Não é, Seu João?”
O pai se aproximou, infantil, e estirou uma pequena embalagem, numa sacola de presentes, na direção de Dona Maria, que se mantinha impassível, como se não estivesse ouvindo. 
“Receba, Dona Maria; eu tenho certeza absoluta que Seu João é o homem da sua vida”, gracejou Fernando. 
Dona Maria levantou os olhos na direção do genro, parecia que ia sorrir, mas logo recobrou a disfarçada seriedade e recebeu o pacote das mãos de Seu João. 
“Um vestido?”, perguntou Dona Maria, surpresa. 
“Um vestido”, respondeu Seu João, contente. “Parecido com aquele, antigo, lembra?”
Dona Maria lembrou de um tecido comprado na feira, lá-vai-trinta-anos, lembrou das feiras, a vida dos dois eram muitas feiras, na Paraíba, no Maranhão... Feiras, sertões, trabalho e luta – muita luta, para não faltar em casa o alimento. 
E aquele tecido, tão colorido, mas não apapagaiado!, que se transformara num lindo vestido, que usara tanto tanto em sua mocidade... 
Dona Maria virou o vestido de um lado e do outro, analisando minuciosamente. Parecia, sim. 
“Parece”, concluiu, econômica no falar. 
“Mármore”, falou seu João, repentinamente. 
“O quê?”, perguntou Dona Maria, sem entender. 
“Bodas de mármore”, explicou Seu João. “39 anos. Nós completamos bodas de mármore.”
Dona Maria ficou estática por um minuto, mais ou menos, depois, amolecendo o coração:
“Ah véi saliente...”


Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com.

Um comentário:

Unknown disse...

Parabéns, meu amor, Mármore, um dos seus lindos contos e é um dos meus preferidos. Beijão. ❤️❤️