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sábado, 11 de abril de 2020

Soledade descobre a poesia


Me chamo Maria Soledade. Brasileira, nordestina, maranhense. O barro da taipa da minha casa foi amassado por minhas mãos cansadas, quando estas mãos ainda tinham forças para o trabalho pesado. 
Quando eu era ainda uma menina, mas já encaminhada pra ser mulher de um homem, antes de ser mulher de mim mesma. 
Estas mãos que fizeram muito trabalho de roça, este corpo cansado em que se escancharam oito filhos e um marido. 
Fui mulher de um macho só, mas nunca fui só mulher. Nem mulher só de mim. 
Enviuvei. Recebi mil e uma propostas pra ser mulher de mil e um homens. Pensei: se nunca fui sequer de mim mesma, como posso ser de alguém?
Alguns anos me alfabetizei. 
E me encantei com as palavras. 56 anos. 
E me descobri fazendo poesia. 
E descobriram que sou poeta. 
E lembrei de minha mãe contando histórias ao pé do candeeiro. E cantando canções antigas ao lavar uma ruma de roupa. 
A poesia estava adormecida na história da minha família: sobre o úmido chão de terra batida, debaixo do solzão do sertão das nossas vidas pequeninas, no pedacinho de carne dividido entre muitos, na água retirada da cacimba, nas brincadeiras, nas histórias assombrosas e até nas goteiras, quando a chuva surpreendia... 
Pois não é que a poesia estava lá e eu nada sabia? 
Ontem, li na internet umas poesias de Maria Firmina dos Reis. O primeiro romance publicado por uma mulher no Brasil, é dela: Úrsula. É muito mais: é o único romance abolicionista escrito por uma mulher em todo o mundo lusófono no período!
Numa poesia, Maria Firmina escreveu:
Quebrou-se enfim a cadeia 
Da nefanda escravidão! 
Aqueles que antes oprimias, 
Hoje terás como irmãos! 
Minha querida poeta, tão bom seria se teus versos fossem uma profecia!
Demoraram cem anos para a sociedade te descobrir como poeta, como escritora, como mulher (portanto, sofredora) que trouxe lindas novidades para a arte de escrever. 
Só hoje te descubro também, Maria Firmina dos Reis, pouco tempo depois do meu encanto batismal com a poesia. 
É a literatura que me mantém viva, a precisão de falar sobre as intranquilidades da vida e do espírito, como a ti, sei que assim também se passou, Maria Firmina dos Reis, minha conterrânea, minha professora. 

Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com. 

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