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quarta-feira, 29 de abril de 2020

Janelas



Desde ontem que passei a publicar textos inéditos, dando continuidade ao projeto "Fique em casa que eu te dou um conto". Ontem, um poema. Hoje e nos próximos dias, crônicas.


Janelas 


Acordei hoje com uma música na cabeça:

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!
[...]
Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle [...] 

A música é “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto. 
Devo ter sonhado com enquadramentos, com janelas. Normal, em se tratando da época em que estamos vivendo. O isolamento tem feito com que olhemos a vida pelas janelas. Sejam elas as janelas físicas dos nossos lares ou as janelas virtuais dos celulares, tablets, computadores. A gente está se acostumando a procurar enxergar a vida-através-da-janela. 
Agora há pouco, por exemplo, enquanto eu lavava os pratos, antes do café, e ouvia Adriana Calcanhoto no celular, na janela do apartamento em frente tocava uma música bem ritmada. Parei o que estava fazendo, pausei a música que estava ouvindo e olhei para a janela do outro lado. Mas... Não foi possível identificar a música; nem imaginar a vida dos meus vizinhos, por trás da janela, à minha frente. 
Depois do café, abro a janela do meu celular. Diante dos olhos, várias outras janelinhas. Abro a janelinha do WhatsApp. Mas, antes que vocês se unam em coro, repetindo “Viciado! Viciado!”, explico: vou interagir com meus alunos e minhas alunas. É que desde que as aulas foram interrompidas, em função da pandemia, o famoso aplicativo, tão popular no Brasil, tem sido nossa principal ferramenta educacional; minha e de outros e outras professores e professoras. 
Quem, dentre nós, diria, um mês e meio atrás, que o WhatsApp seria “uma janela para o saber”? Poético, não? Bem que estamos tentando transformar em realidade essa poesia educacional, mas... 
Bem ou mal sucedidos, descobrimos a importância das redes sociais, para além da superficialidade de que são acusadas. No caso do uso educacional do WhatsApp, os alunos têm reclamado, não do aplicativo em si, nem das aulas, mas do excesso de postagens e de atividades. E, em pensamento, alguns de nós, professores, com caras de diabinhos: “Então, vocês estão se reclamando que não aguentam mais pegar o celular e topar com ele cheio de mensagens? Que engraçado!...”
Alguns dos nossos estudantes podem questionar onde está o humor dessa situação. Mas, peço que me perdoem, uma das coisas que mais me diverte, faz uma semana, é uma mensagem em áudio de uma aluna, em que, reclamando das aulas online, ela diz (textualmente): “Professor, tem dia que eu não faço é dormir. Só fazendo essas atividades. Tu é doido, siô! Tem dia que eu faço é chorar aqui, dentro do meu quarto.” O sem-coração aqui vai às gargalhadas, ouvindo essa gravação, principalmente pelo tom verdadeiramente choroso da voz e, sei lá, o inusitado da situação. 
Então, estoicamente, professores e estudantes, tentam contornar o isolamento sócio-educacional através dessa experiência online, em que se sobressai o desejo de acertar, abrindo janelas virtuais e apostando na vontade de aprender. 
A experiência educacional já foi bem pior, pois havia menos janelas. Em 1997, fui contratado para dar aulas de português e matemática a um grupo de pessoas, moradoras do povoado Juçaral do Vital, zona rural do município de Pio XII. As aulas aconteciam aos domingos. Um taxista me levava e me trazia. As aulas tinham como conteúdo os assuntos constantes no edital do concurso que a prefeitura realizaria. 
Ao final do primeiro domingo de uma bem sucedida aula, quando voltávamos para casa, o taxista parou o carro, a pedido de um homem, na beira da estradinha empoeirada. Baixei o vidro e, pela janela do carro, vi lá fora um homem jovem, pequeno, que sorriu para nós. 
– Tudo bem, né? 
– Tudo bem, respondi, retribuindo a simpatia. 
– Pois é...
– Pois é... – repetiu o motorista. 
– Té mais, disse o rapaz lá fora. 
– Até, repeti. 
Cinco minutos depois, o taxista me perguntou:
– Sabe quem é aquele ali? 
– Não. 
– O Carrada. 
– O Carrada? 
– O Carrada. Ele veio assuntar quem tu era. 
Nessa época, o Carrada era enquadrado nas colunas policiais como um dos mais perigosos bandidos do Maranhão. A ele eram atribuídos assaltos, sequestros, assassinatos... Um dia antes daquele domingo, lembro de uma vizinha gritando com o filho, que brincava na rua:
– Menino, tu entra pra dentro!! Tomara que o Carrada chegue aí e te carregue, maluvido!! 
Pois bem. Então, o Carrada era o terror em pessoa. Mas, da janela do carro, o que eu via era um rapaz que, fisicamente, não representava ameaça visível (ele morreria alguns anos depois, em troca de tiros com a polícia; versão oficial). 
Então, combinemos, estudar era mais difícil, ensinar mais ainda. Contudo, o que a metáfora da janela parece querer nos dizer é que nem sempre o “real” é apresentado no enquadramento que capta os nossos olhos? Ou, vou no popular, quem vê cara não vê coração, e a história do Carrada é uma parábola sobre isso? 
Nossos olhos são captados – ou seria melhor dizer, capturados – pela imagem, e não o contrário. Isso tem acontecido bastante, nesses tempos de redes sociais e manipulações virtuais. Mas não entremos em pânico. Não venham dizer que o mal reside no outro lado da telinha. O mal e o bem residem em qualquer lugar. Uma das coisas positivas dessa pandemia é que o black mirror se mostrou mais solidário que monstruoso. 
Quanto a não sabermos o que as pessoas escondem atrás das janelas de suas almas ou até que ponto estão realmente conectadas umas com as outras, isso independe da forma do contato, se no corpo-a-corpo ou por meio de um aplicativo de celular. Posso estar conversando com uma pessoa, sentada ao meu lado, e o seu pensamento estar longe, completamente desconectada de mim, dos meus pensamentos, dos meus sentimentos... 
Lamento, leitores e leitoras, interromper essa crônica no exato momento em que ela parecia estar se tornando profunda e necessária. É que eu a escrevo no celular, andando de um lado para o outro do apartamento e, ao olhar da janela da sala, percebo a vizinha à frente me observando... Vou parar por aqui: deitar ali na semiescuridão do quarto e ouvir Adriana Calcanhoto, pequena pausa antes de postar, no WhatsApp, minha próxima aula de língua portuguesa.


São Luís, 29/04/2020, 16h10min.


Imagem de domínio público, disponível em www.pixabay.com
By, Noe Calderon: https://pixabay.com/pt/users/noe_calderon-7222335/


Para curtir “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto: https://m.youtube.com/watch?v=XwddDUCbEVw


7 comentários:

Gilnnes disse...

Já quero a continuação 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼😃

Unknown disse...

Que bela crônica 👏👏

Unknown disse...

Que bela crônica👏👏👏

Unknown disse...

Maravilha. 👏👏👏👏👏

Unknown disse...

Maravilha 👏👏👏👏👏👏👏👏👏

Unknown disse...

Sem comentários👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

Unknown disse...

Adorei, dar pra refletir bastante 👏🏻👏🏻