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quarta-feira, 1 de abril de 2020

O anjo





Samuel especulava como os fatos tinham se sucedido de forma tão rápida e imprevisível. Um mês antes, fazia entregas na loja de material de construção. 
Perdera o emprego.  
Vinte anos, apenas. No entanto, tinha mulher e filho pequeno. Já não era sozinho no mundo. 
Não queria ficar parado, não podia ficar parado, tinha bocas para alimentar, mas onde trabalhar?  
Trabalho nas capoeiras, a gente se mata e não se alevanta, costumava dizer o pai, lembra Samuel desse conselho, que não seguiu, não deu atenção.
Daquela vez, virou escravo. Dormia no chão, bebia água barrenta, tinha o nome no caderno do patrão, com uma lista grande de dinheiro que estava devendo referente à comida que comprava, se não quisesse morrer de fome, até que ele e seus companheiros foram resgatados pelo pessoal do ministério do trabalho. 
Conselho de pai não se ignora (desculpe, pai, eu precisava trabalhar...). 
Saíra da loja de material de construção e fora trabalhar na zona rural de novo, não era trabalho escravo, só não assinava a carteira, mas pagava quase o salário completo, cuidava de uma chácara, o dono, Dr. Zacarias, morava na capital e confiava plenamente em Samuel e confiança é coisa rara hoje em dia! 
E foi quando voltava da chácara, de moto, que derrapou no areal, bateu a cabeça na árvore, tinha sorte por continuar vivo, mas a moto não pegou mais. Saiu da mata atordoado, pegou a BR e ouviu vozes, parece que algumas pessoas se dirigiam­ até ele, não entendia direito o que estavam dizendo, levou um empurrão, um homem atarracado, com cara de bravo, o empurrava­, xingava­, dizia coisas incompreensíveis, embora Samuel estivesse com a cabeça sangrando e precisando de ajuda. 
Samuel falava sozinho, mas era difícil entender o que ele dizia. Caminhou lentamente, se percebia­ que fazia um esforço sobre-­humano para se manter em pé, chegou a um pequeno povoado e se sentou­ à sombra de uma árvore. Ali perto, algumas casinhas e um posto de gasolina. No posto, uma mulher abastecia o carro. Dentro do carro, o seu filho de quinze anos jogava ao celular. Algumas pessoas se aproximaram­ e começaram a dirigir ofensas a Samuel. As vozes cresceram e um tom de hostilidade e violência iminente foram percebidos pela mulher, que saiu do carro e se encaminhou­ ao grupo de pessoas que cercavam Samuel. 
“Mãe!”, gritou o filho, saiu do carro e acompanhou a mãe. 
Muitas coisas eram faladas, babelicamente, ao mesmo tempo: 
“É ele mesmo!” 
“Foi esse safado quem estrupou a menina!” 
“Andou aprontando por aí e tá fugindo, né, cachorro?” 
“Não me matem, por favor!”, implorava Samuel. 
Corajosamente, a mulher se colocou­ à frente dele: 
“Gente, vocês não ‘tão vendo a situação desse homem?” 
“E a situação que ele deixou a menina?”, gritou alguém lá no meio da turba. 
“O senhor estuprou uma menina?”, perguntou a mulher a Samuel. 
“Eu nunca fiz mal a ninguém, minha senhora”, respondeu Samuel, chorando. 
“Mentira desse safado!”, gritaram de lá. 
“Eu sou advogada. Ninguém toca nesse homem”, disse a mulher, corajosamente. Nesse momento, o filho se aproximou­ e se colocou­ ao seu lado."
São os direitos humanos!”, alguém gritou, em tom de deboche.  
“São, são os direitos humanos. Alguém quer rasgar os direitos humanos, quer rasgar a lei?”, desafiou a mulher. Todos ficaram em silêncio. “Em vez de ser juiz e carrasco, por que vocês não ajudam? Eu preciso de uma pessoa pra ajudar a colocar ele no meu carro.” 
“Eu ajudo”, disse uma mulher pequena e franzina, que se aproximou e, de fato, ajudou a mãe e o filho a colocar o homem no carro. Ia ser levado para o hospital. “Eu mostro pra senhora onde é”, disse a mulher solidária.  
No carro, o rapaz falou baixinho para a mãe: “Mãe, a senhora é doida.” E ela, também baixinho, para ele:  
“Sou, mas seu pai deve continuar ignorando minha doidice” e sorriu para o filho. 
A mulher deixou Samuel no hospital e só saiu de lá depois que o delegado apareceu. O próprio delegado desfez a confusão e anunciou que o estuprador de que as pessoas falavam não era aquele homem. O estuprador já estava preso na cidade vizinha. Feito esse esclarecimento, pediu que Samuel se identificasse e contasse sua história. Samuel contou uma história confusa, pois confusa estava sua cabeça, falou de quando fora enganado tempos atrás, levado por falsas promessas, falou do emprego atual, cuidando da chácara do Dr. Zacarias, falou que trabalhar em capoeira, a gente se mata e não se alevanta, seu pai estava certo.  
A mulher e o filho, o médico e o delegado, o policial e a enfermeira, todos perceberam que Samuel não era o estuprador de que falavam, eu já falei isso, repetiu o delegado, pois o estuprador já estava preso na cidade vizinha.
"Mas esse homem quase foi linchado!", lembrou a mulher.
As palavras de Samuel eram um rosário sem fim, seus olhos não se fixavam em ponto algum: trabalhava de seis às seis, dormia sobre papelão, ele e mais doze companheiros, tinham que expulsar ratos e baratas, a comida era uma gororoba, reclamar era inútil, a comida me fez mal mais de uma vez, tive caganeira e inda paguei pelo remédio, era tudo pago!, no caderno sujo o valor que Samuel tinha que pagar. 
Quando Samuel deu uma pausa em sua narrativa, a mulher que o salvara do linchamento estava chorando. Explicou que tinha que continuar a viagem. 
“Tudo explicado, né delegado?”, perguntou a mulher. 
“Pra mim, as coisas já estavam explicadas, já disse a vocês”, afirmou o delegado. 
“Só que ele não fala coisa por coisa”, disse a enfermeira. 
“Fala, explica muita tristeza, muito sofrimento que passou, talvez não de agora, mas não deve ser coisa antiga; eu entendi tudo”, disse a mulher. 
E Samuel, como que beliscado por uma mão invisível, perguntou à mulher: 
“Todo anjo tem um nome, qual é o seu?”

Um comentário:

Unknown disse...

Parabéns, meu amor. Os seus textos nos dá a certeza de que a literatura é bela, e que necessitamos dela para vivermos melhor. Samuel está representando muitos outros que existem no mundo. Uns têm a sorte de encontrar anjos e outros não. ❤️❤️😘