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quinta-feira, 20 de julho de 2023

Fake news, pós-verdades, velhas mentiras

 


Tio Zé era um notório mentiroso. Uma das suas mais célebres mentiras detalhava uma bem sucedida pescaria que se transformara numa caçada ainda mais bem sucedida, embora absolutamente casual: terminada a pesca, quando Tio Zé foi enxugar as mãos numas folhas próximas viu, estupefato, que estava segurando as orelhas de um tatu. Benzadeus. Arrumados os peixes e o tatu no caçuá, Tio Zé ergueu as mãos para os céus em agradecimento, no exato momento em que passava um bando de pássaros... Pois não é que ele ainda teve a sorte de agarrar oito nambus?
Tio Zé era irmão da minha avó materna. Vivendo numa família grande, num Nordeste seco e pobre, as fabulações de Tio Zé tinham a função de minimizar o sofrimento, tanto dele como dos agraciados pela sua prosa. Claro que todos sabiam que tudo aquilo era mentira. Mentira, não: fabulações. Por isso, para mim, Tio Zé era uma pessoa fabulosa. Não tive a sorte de conhecê-lo, mas vejo-o: desenredando suas fábulas. Vejo-o: de feições sérias, seja diante do riso escorrido dos que admiram uma boa história ou dos anátemas dos falsos moralistas, vejo-o: seriamente ciente de sua função narrativa.
Lamento dizê-lo, Tio Zé, mas, nos dias atuais, muitas das notícias que lemos ou ouvimos não são verdadeiras, embora escritas, publicadas e divulgadas como verdades. Estamos na era das “fake news” ou das “pós-verdades”.

Apesar do nosso súbito espanto, divulgar mentiras sempre foi uma especialidade dos poderosos. Alvo de todo tipo de mentira, Karl Marx se tornou uma das pessoas mais difamadas de todos os tempos. Jornais aliados aos governos capitalistas divulgavam as mais descabidas calúnias sobre Marx, com o objetivo de neutralizar a força do seu chamado à união mundial dos trabalhadores.
As calúnias contra Marx não cabem numa crônica: seria necessária uma vasta pesquisa acadêmica – numa abordagem interdisciplinar, envolvendo, no mínimo, ciência política, economia, sociologia e psicologia – para tentar explicar a quantidade surreal de odiosas mentiras de que Marx foi vítima, como a de trabalhar secretamente para o governo alemão e de levar uma vida de luxo e conforto com o dinheiro dos membros da Associação Internacional dos Trabalhadores. Pobre Marx... Logo ele, que quando concluiu a escrita de “Para a Crítica da Economia Política” (1859), declarou ser “a primeira vez que alguém escreve sobre o dinheiro com tanta falta dele”. Não é à toa que Engels denominou o amigo de “o homem mais odiado e mais caluniado do seu tempo”.
Numa carta de 1871, Marx escreve: “A imprensa diária e o telégrafo, que num instante espalha invencionices por toda a terra, fabricam mais mitos num único dia (e as manadas burguesas as propagam ainda mais) do que no passado teria sido possível produzir ao longo de um século” (Marx fazia referência ao telégrafo; imagine se ele conhecesse a Internet).
Espalhar mentiras sempre foi uma estratégia dos poderosos e da mídia sem-vergonha na defesa dos interesses dos mais fortes. Lembram-se do argumento usado por George Bush, em 2003, ecoado pelo The New York Times e outros grandes jornais, de que a invasão do Iraque era necessária, para “libertar” o país e acabar com as “armas de destruição em massa” que Saddam Hussein possuía? (acusação que, diga-se de passagem, não se provou verdadeira).
Em 2008, José Saramago escreveu, profeticamente: “A sociedade humana atual está contaminada de mentira como da pior espécie das contaminações morais, e ele [Bush] é um dos principais responsáveis. A mentira circula impunemente por toda a parte, tornou-se já numa espécie de outra verdade.” Quinze anos atrás, portanto, Saramago já denunciava a "pós-verdade".
Desde sempre tivemos que lidar com as mentiras que os opressores pregam para engabelar os oprimidos. A diferença, hoje, é que os meios (mídias) disponíveis dão agilidade a essas mentiras, atingem milhares de analfabetos políticos e causam estragos mais rapidamente.
Temos que continuar explicando pacientemente os interesses que cada mentira esconde: as narrativas “jornalísticas” da grande mídia são ocultamente interesseiras, não possuem o despropósito das fábulas casuais, contadas despretensiosamente como meras histórias de pescadores (ou caçadores).

Publicado originalmente em 2018. 

Karl Marx to Ludwig Kugelmann, 27 July 1871. http://marxists.catbull.com/archive/marx/works/1871/letters/71_07_27.htm

Discurso Diante do Tumulo de Karl Marx. Friedrich Engels. 17 de Março de 1883. https://www.marxists.org/portugues/marx/1883/03/22.htm
José Saramago. George Bush, ou a idade da mentira. http://caderno.josesaramago.org/1764.html
 

 

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