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segunda-feira, 7 de abril de 2025

Incelenças

 

 

Excelências. 

Empresa de excelência. 

Escola de excelência.

Excelência pessoal. 

Excelências. 

O conceito está por aí, persuadindo-nos que basta seguir alguns procedimentos e a excelência virá.

Virá?

A excelência contraria o óbvio: a imperfeição de que são constituídos os seres humanos, saudosos de um não-sei-o-quê que sempre nos acompanha.

Somos excelentes em nossas imperfeições.

Se não nos enquadramos no script da excelência, somos menos gente? Somos tão-somente um empecilho, carta fora do baralho? Mesmo que o roteiro nos reserve o papel de desentendido dos outros e algoz de si mesmo? Encaixe-se; ou será substituído.

Qual o preço dessa excelência? “Tome estas pílulas”, disse o médico da empresa ao meu taciturno amigo, num dos poucos dias em que este rapaz decidiu ser mais falante com os colegas de trabalho. “Você parecia alterado”, disse o médico ao meu amigo, que continua consumindo as milagrosas-pílulas-pró-excelência-empresarial.

O “excelente” professor de matemática da Escola Normal da minha infância ia aos sábados levar problemas para o meu pai resolver… Meu pai, que andava longe da excelência paterna, andava misteriosamente próximo duma suposta excelência matemática, mesmo tendo vivido na roça e mal concluído o primário… Não sabemos, talvez nunca saibamos, como é moldada a matéria de que nos constituímos...

Sei que somos insubstituíveis, pois mesmo que reponham a peça que você é, a nova peça será feita de outro material: a coisificação de outras experiências. Logo, você não estará sendo substituído. Cada ser humano é uma peça única: daí sermos insubstituíveis.

No Nordeste, excelência virou incelença. Mui interessante. Mudaram-se os prefixos: o ex (para fora) se transformou no in (para dentro). A incelença não é algo para “se amostrar”, mas para se viver, para se consolidar. 

Ou para se rememorar, como algo que nos constituiu, como as incelenças, cantigas de sentinelas, benditos de defuntos…

… Tão gostosamente de se ouvir também incelença para o trato das autoridades que estão léguas e léguas distantes da excelência como pessoas boas…

Daí eu cantar incelenças: não só para o que se perdeu, mas para a vida, e para o que em nós buscamos: não a perfeição, mas o mistério.

 

 

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Tesouro

 


O meu pai nunca se cansou da roça. Sempre trabalhou sem reclamar. Às vezes, mesmo com o sol pouco amigo, lá ia ele. E minha mãe, com as mãos nos quartos:

Tu já vai de novo, homi?

Ele era, então, um típico homem da roça.

Mas teve um tempo em que ele voltava da roça aflito, célere, olhos irritados e caía na rede e dizia que a cabeça doía. Então, o médico o proibiu de ir pra roça e, principalmente, pegar sol.

Mas papai nunca foi de passar uma tarde na rede, balançando-se com cantigas ao vento. Não; sempre foi um homem de atitude. Quando, lá mesmo no nosso povoado, abriram uma sala para alfabetização de adultos, papai foi o primeiro a se matricular. Chegou em casa todo feliz, contando a novidade.

Vou ser estudante também, igual vocês e apontou pra nós, eu, meu irmão caçula e minha irmã, um ano mais velha que eu.

Nós aplaudimos a decisão, mas mamãe foi contra:

E tu tem lá cabeça pra aprender alguma coisa ainda?

Vá estudar também, dona disse minha irmã.

E eu tenho cabeça?! respondeu mamãe, atarantada e em fuga para o terreiro.

Mas papai foi estudar e estudou – e aprendeu a ler.

Aí, teve aquele dia. Íamos pegar o carro na praça central de Pio XII, de volta para o povoado, quando papai viu o livro. Era um livro de Rubem Braga, cheio de contos, esquecido num banco da praça. Havia muitas pessoas esperando transporte para a zona rural da cidade, mas só meu pai viu o livro, como se sua recém adquirida habilidade de ler também tivesse lhe dado poderes magnéticos em relação aos objetos de leitura.

– Oxi… Esqueceram um livro aqui…

Papai saiu perguntando entre as pessoas que estavam ali pela praça se o livro era de alguma delas. Não, não era.

– Guarde com o senhor, seu Chico! – disse seu Nonato, o motorista da camionete.

Papai guardou, mas, cheio de escrúpulos como ele é, na segunda-feira foi à biblioteca municipal, ali na praça, pertinho de onde os moradores pegavam os carros com destino aos seus povoados, pois, segundo papai, alguém deveria ter pego emprestado na biblioteca e esquecido no banco da praça.

– Não, não é daqui – disse a bibliotecária, enquanto pesquisava no computador se o livro constava no acervo e se estava entre os emprestados.

Por fim, papai ficou com o livro. E o leu, por vários e vários dias. Chegávamos da escola e o encontrávamos embaixo do pé de manga, livro nas mãos, muita paciência e olhos que sorriam o mistério de uma beleza que não conseguíamos ver, mas sabíamos que estava lá.

Quando percebemos o interesse de papai pela leitura, pensamos um dia levar para ele livros que tínhamos acesso na biblioteca da escola em que estudávamos.

– Papai tem muita vontade de saber como era a avó dele – disse minha irmã. – Por isso, vou levar esse livro aqui.

E mostrou-me um bonito livro em capa dura intitulado “Mãe África”.

Papai gostou da novidade. Lia-o com avidez, inclusive à luz de velas, quando faltava energia no povoado – e olha que faltava com frequência. Ao terminar, nos perguntou:

– De onde saiu esse, tem mais?

Tinha. Na bibloteca da escola tinha uma parte da estante denominada “Literatura Negra”. Eu e minha irmã voltamos lá, escolhemos um livro cada um de nós e levamos emprestado. E foi assim que chegamos em casa com “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus – e sobre quem havíamos assistido um documentário, na aula de português – e “Ponciá Vicêncio”, de Conceição Evaristo. Papai leu-os quase ao mesmo tempo. Depois da leitura, andava cabisbaixo, resmungando sozinho. Um dia mamãe perguntou o que ele tinha:

– A bichinha da Ponciá… – foi sua única e lacrimosa resposta.

– Essas leitura não tão fazendo bem pro seu pai – mamãe veio reclamar pra gente.

– Tão, sim! – respondeu minha irmã. – Até com um ar de inteligência papai tá agora, a senhora num tem reparado não?

– Pra mim ele num mudou nada – discordou mamãe, mas seus olhos em direção a papai pareciam dizer o contrário.

E mais cismada ela ficou quando papai anunciou que tinha uma viagem a fazer.

– Pra onde, homi?

– Vou bem ali, no Centro da Adelina, ver tia Aldina.

O Centro da Adelina fica a cerca de duzentos quilômetros do município de Pio XII. Mamãe não gostou da ideia.

– Fazer o quê? Sabe nem se tua tia é viva ainda…

– É claro que é! Como é que ela morreu e ninguém ficou sabendo?

Ajudamos a estabelecer alguns contatos, descobrimos que sua tia Aldina era viva, sim, e papai viajou.

Era para ser uma viagem de três dias, mas durou dez.

Minha irmã e meu irmão jogavam bola no terreiro em frente de casa, eu ajudava mamãe a levar para dentro as coisas que estavam no jirau, quando seu Nonato da camionete parou e papai desceu do carro, tão feliz que parecia mais moço. Foi abraçando a gente e contando logo as novidades.

Estava muito feliz por ter reencontrado sua tia Aldina que, apesar dos seus oitenta e oito anos, continuava lúcida e faladeira.

– Olhem isso aqui – e ele tirou da mochila uma pasta dessas de escola, de plástico transparente. Dentro dela, apenas um desenho. Uma mulher negra idosa, de olhar altivo e cocó.

– Quem é essa aí? – perguntou mamãe.

– Minha vó – respondeu papai, sem esconder o orgulho.

– Tua vó?

– Sim, minha vó, dona Joana Aldina da Conceição.

Mamãe olhava e olhava para o desenho, com um estranho encantamento.

Depois, papai plastificou o desenho que, contou-nos ele, havia sido feito por um filho de um primo seu, este, por sua vez, filho de sua tia Aldina. O desenhista fez o retrato a partir das lembranças e das vívidas descrições da tia Aldina.

O desenho foi colocado numa moldura e pregado na parede. E quando chegava gente lá em casa, não era papai quem fazia propaganda da nossa bisavó, era mamãe quem, sem disfarçar o orgulho, fazia questão de apontar para o quadro – como que para um tesouro que estivera oculto por anos e anos – e perguntar às visitas:

– Já viu o retrato da vó de Chico?

 



Pio XII, Maranhão, 23/02/2025, 16:42 hs. Para meus queridos alunos e alunas do Centro Educa Mais Jansen Veloso.