O meu pai nunca se cansou da roça. Sempre trabalhou sem reclamar. Às vezes, mesmo com o sol pouco amigo, lá ia ele. E minha mãe, com as mãos nos quartos:
– Tu já vai de novo, homi?
Ele era, então, um típico homem da roça.
Mas teve um tempo em que ele voltava da roça aflito, célere, olhos irritados – e caía na rede e dizia que a cabeça doía. Então, o médico o proibiu de ir pra roça e, principalmente, pegar sol.
Mas papai nunca foi de passar uma tarde na rede, balançando-se com cantigas ao vento. Não; sempre foi um homem de atitude. Quando, lá mesmo no nosso povoado, abriram uma sala para alfabetização de adultos, papai foi o primeiro a se matricular. Chegou em casa todo feliz, contando a novidade.
– Vou ser estudante também, igual vocês – e apontou pra nós, eu, meu irmão caçula e minha irmã, um ano mais velha que eu.
Nós aplaudimos a decisão, mas mamãe foi contra:
– E tu tem lá cabeça pra aprender alguma coisa ainda?
– Vá estudar também, dona – disse minha irmã.
– E eu tenho cabeça?! – respondeu mamãe, atarantada e em fuga para o terreiro.
Mas papai foi estudar – e estudou – e aprendeu a ler.
Aí, teve aquele dia. Íamos pegar o carro na praça central de Pio XII, de volta para o povoado, quando papai viu o livro. Era um livro de Rubem Braga, cheio de contos, esquecido num banco da praça. Havia muitas pessoas esperando transporte para a zona rural da cidade, mas só meu pai viu o livro, como se sua recém adquirida habilidade de ler também tivesse lhe dado poderes magnéticos em relação aos objetos de leitura.
– Oxi… Esqueceram um livro aqui…
Papai saiu perguntando entre as pessoas que estavam ali pela praça se o livro era de alguma delas. Não, não era.
– Guarde com o senhor, seu Chico! – disse seu Nonato, o motorista da camionete.
Papai guardou, mas, cheio de escrúpulos como ele é, na segunda-feira foi à biblioteca municipal, ali na praça, pertinho de onde os moradores pegavam os carros com destino aos seus povoados, pois, segundo papai, alguém deveria ter pego emprestado na biblioteca e esquecido no banco da praça.
– Não, não é daqui – disse a bibliotecária, enquanto pesquisava no computador se o livro constava no acervo e se estava entre os emprestados.
Por fim, papai ficou com o livro. E o leu, por vários e vários dias. Chegávamos da escola e o encontrávamos embaixo do pé de manga, livro nas mãos, muita paciência e olhos que sorriam o mistério de uma beleza que não conseguíamos ver, mas sabíamos que estava lá.
Quando percebemos o interesse de papai pela leitura, pensamos um dia levar para ele livros que tínhamos acesso na biblioteca da escola em que estudávamos.
– Papai tem muita vontade de saber como era a avó dele – disse minha irmã. – Por isso, vou levar esse livro aqui.
E mostrou-me um bonito livro em capa dura intitulado “Mãe África”.
Papai gostou da novidade. Lia-o com avidez, inclusive à luz de velas, quando faltava energia no povoado – e olha que faltava com frequência. Ao terminar, nos perguntou:
– De onde saiu esse, tem mais?
Tinha. Na bibloteca da escola tinha uma parte da estante denominada “Literatura Negra”. Eu e minha irmã voltamos lá, escolhemos um livro cada um de nós e levamos emprestado. E foi assim que chegamos em casa com “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus – e sobre quem havíamos assistido um documentário, na aula de português – e “Ponciá Vicêncio”, de Conceição Evaristo. Papai leu-os quase ao mesmo tempo. Depois da leitura, andava cabisbaixo, resmungando sozinho. Um dia mamãe perguntou o que ele tinha:
– A bichinha da Ponciá… – foi sua única e lacrimosa resposta.
– Essas leitura não tão fazendo bem pro seu pai – mamãe veio reclamar pra gente.
– Tão, sim! – respondeu minha irmã. – Até com um ar de inteligência papai tá agora, a senhora num tem reparado não?
– Pra mim ele num mudou nada – discordou mamãe, mas seus olhos em direção a papai pareciam dizer o contrário.
E mais cismada ela ficou quando papai anunciou que tinha uma viagem a fazer.
– Pra onde, homi?
– Vou bem ali, no Centro da Adelina, ver tia Aldina.
O Centro da Adelina fica a cerca de duzentos quilômetros do município de Pio XII. Mamãe não gostou da ideia.
– Fazer o quê? Sabe nem se tua tia é viva ainda…
– É claro que é! Como é que ela morreu e ninguém ficou sabendo?
Ajudamos a estabelecer alguns contatos, descobrimos que sua tia Aldina era viva, sim, e papai viajou.
Era para ser uma viagem de três dias, mas durou dez.
Minha irmã e meu irmão jogavam bola no terreiro em frente de casa, eu ajudava mamãe a levar para dentro as coisas que estavam no jirau, quando seu Nonato da camionete parou e papai desceu do carro, tão feliz que parecia mais moço. Foi abraçando a gente e contando logo as novidades.
Estava muito feliz por ter reencontrado sua tia Aldina que, apesar dos seus oitenta e oito anos, continuava lúcida e faladeira.
– Olhem isso aqui – e ele tirou da mochila uma pasta dessas de escola, de plástico transparente. Dentro dela, apenas um desenho. Uma mulher negra idosa, de olhar altivo e cocó.
– Quem é essa aí? – perguntou mamãe.
– Minha vó – respondeu papai, sem esconder o orgulho.
– Tua vó?
– Sim, minha vó, dona Joana Aldina da Conceição.
Mamãe olhava e olhava para o desenho, com um estranho encantamento.
Depois, papai plastificou o desenho que, contou-nos ele, havia sido feito por um filho de um primo seu, este, por sua vez, filho de sua tia Aldina. O desenhista fez o retrato a partir das lembranças e das vívidas descrições da tia Aldina.
O desenho foi colocado numa moldura e pregado na parede. E quando chegava gente lá em casa, não era papai quem fazia propaganda da nossa bisavó, era mamãe quem, sem disfarçar o orgulho, fazia questão de apontar para o quadro – como que para um tesouro que estivera oculto por anos e anos – e perguntar às visitas:
– Já viu o retrato da vó de Chico?
Pio XII, Maranhão, 23/02/2025, 16:42 hs. Para meus queridos alunos e alunas do Centro Educa Mais Jansen Veloso.
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