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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O horror nos tempos de cólera

 


GLEDSON SOUSA 


Nessa história não há mocinhos, como nem todos são bandidos. Visto do alto, o que choca é a indiferença frente a muitos corpos mortos, a maior parte muito jovens; o que choca é a espetacularização da barbárie, o que choca é reconhecer que foi uma operação feita para colher frutos políticos à custa da morte de muitos. Necropolítica.

Rio de Janeiro, 29 de outubro de 2025: na cidade nem tão maravilhosa assim, um contingente de cerca de 2500 policiais sobe os Morros do Complexo do Alemão e da Penha para cumprirem com mandados de busca e apreensão contra chefões do Comando Vermelho, a maior facção criminosa do Rio. A ação é legal, mas pelo desencadear, não é legítima, porque ao que parece, havia a ordem expressa de “mate primeiro, pergunte depois”; não que com os traficantes seria diferente caso encontrassem os policiais: a crueldade do tráfico é costumeira, são frequentes as torturas e os assassinatos que são usados como formas de intimidação contra a população local.

Mas quando falamos de policiais, estamos falando de agentes do estado: se a ação do estado se equipara – aos olhos da população e na sua forma prática – às ações dos criminosos, turva-se a fronteira do que é lícito ou não, do que é legítimo ou não, do que é civilização, do que é barbárie. A lei não torna lícito o crime que foi cometido em nome dela, talvez no máximo atenue as penas, se levar em consideração as peculiaridades dessa guerra sem fim contra o tráfico.

Choca perceber que a maior parte dos corpos expostos eram de homens jovens e negros  e que, como em toda guerra, as pessoas morrem executando ordens daqueles QUE NÃO VÃO PARA A GUERRA; o mesmo pode-se aplicar aos policiais: o governador e o secretário que ordenaram essa ação midiática não subiram o morro, assistiram dos seus gabinetes, com o regozijo próprio dos hipócritas.

Hipocrisia é algo bem presente nessa crise: num vídeo exibido no Youtube, três policiais oravam ajoelhados antes de subirem o morro: a hipocrisia não é deles, até entendo que os mesmos deveriam estar pedindo proteção, sabedores dos riscos que corriam; a hipocrisia é daqueles que dos púlpitos discursam achando que o deus em que eles acreditam ou o cristianismo legitima as mortes, a hipocrisia é daqueles que criticam quando acontece uma batida policial no centro financeiro da Faria Lima mas acham normal que a policia atire a esmo nos morros e favelas.

Porque essa é a questão: os chefões reais do tráfico de drogas – que movimenta algo em torno de centenas de bilhões de dólares por ano (segundo estimativas da ONU),  um valor entre 320 a 650 bilhões ou mais, é difícil estimar com precisão por se tratar de uma economia ilícita – não estão nos morros, florestas ou plantações, eles estão em corporações, condomínios de luxo e em circuitos que são vedados tanto aos traficantes que ficam nos morros quantos aos policiais que morrem cumprindo seu dever, e não poucas vezes traficantes e autoridades estão unidos em associações promíscuas numa rede de corrupção que movimenta milhões.

Hipocrisia também daqueles que consomem drogas e fazem discursos contra o tráfico: num caso recente que aconteceu no estado de São Paulo, um policial e sua esposa foram encontrados mortos num motel; ao fazerem as diligências e examinarem o caso, descobriram que o policial e sua esposa haviam consumido cocaína e álcool, numa associação que se revelou fatídica. Não é preciso dizer mais nada.

Somente que policiais e os pequenos traficantes do morro no fundo são vítimas de uma superestrutura que os empurra para os lugares que eles ocupam respectivamente, mas que talvez essa seja uma guerra que permanecerá, porque no fundo a guerra deixa tudo como está: o tráfico permanece, os policiais desafogam seu ódio por tanta coisa sofrida, os néscios se rejubilam com as mortes e os chefões continuam longe, protegidos, guardados em algum lugar, abrindo alguma fintech ou algum restaurante de luxo, investindo em fazendas e usinas de produção de álcool.

Policiais e os jovens que são vítimas do tráfico deveriam compreender que o verdadeiro inimigo é uma estrutura de classe e um sistema que precisa que tudo permaneça como está: uma sociedade hierarquizada, um contingente imenso de desempregados, um discurso maniqueísta e esquizofrênico que esconde a verdadeira natureza da realidade: que há uma elite global que enriquece continuamente com tráfico (de drogas, de pessoas, de animais…), destruição da natureza, com guerras e massacres, mas que disfarça suas ações e a todos envolve numa progressão apocalíptica em direção ao nada. Necrocapitalismo.

Permanece a imagem dos corpos expostos na rua, que nem sabemos mais se é Rio de Janeiro, Gaza ou Sudão do Sul: quando se trata da morte de comunidades pobres (e os policiais fazem parte dessas comunidades), a morte é homogênea e silenciada.

Mas sem dúvida, o governador do Rio de Janeiro tem as mãos sujas de sangue e entrou para a história como um perpetrador de massacres, historiadores do futuro só lembrarão dele por ser aquele que ordenou “O massacre do Morro do Alemão e da Penha no ano de 2025”: triste feito.

 

Post Scriptum: Escrevi esse texto dia 30/10/2025 e no sábado(01/11/2025), circulavam os vídeos que mostram o governador do Rio de Janeiro cantando numa igreja católica da Barra da Tijuca, sob o aplauso dos fiéis… necrocristianismo…

 

Texto originalmente publicado em: https://triplov.pt/o-horror-nos-tempos-de-colera/

 

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