Já contei essa história para meus colegas e minhas colegas
de profissão. Uma história muito educativa.
Vez por outra me encontro com um senhor que tem uma filha
morando nos Estados Unidos. Soube disso
através dele. Instigados por uma empatia recíproca,
sempre que nos encontramos na rua, furtamos cinco minutos de nossas obrigações
diárias para ele me contar alguma novidade.
Da última vez que nos vimos, ele me falou, orgulhoso, de uma
netinha de três anos que está sob os seus cuidados. “Ela é muito inteligente”,
disse-me ele.
- É? – perguntei.
- É. Outro dia eu fui dar o comer dela, aí perguntei a ela:
“Vamos comer, minha filha?”. Ela respondeu: “Vou não, cara de...” (a menina soltou
um palavrão sonoro e impublicável). Terminou sua historinha, ele deu uma
gostosa gargalhada.
- Nossa, que menina inteligente! – comentei , sem demonstrar
minha perplexidade (antes atônito que afônico, pensei).
Woody Allen nos provou em “Meia-noite em Paris” que toda
idealização do passado é uma armadilha. Portanto, nada de fazer uma lista das
“coisas boas que não voltam mais”. Contudo,
tenho a ligeira impressão que as crianças hoje dominam e fazem uso de um
estoque maior de palavrões. Não quero aqui publicar um libelo moralizante sobre
o assunto nem procurar explicá-lo, mas, repito, a minha impressão é que as crianças
– e os adultos também – estão, digamos, com uma proficiência cada vez maior no
baixo calão.
Por outro lado, constato estar em decadência a arte de
arremedar. Quando foi a última vez que vi uma criança praticando-a? Não lembro.
No nosso tempo, a arte de arremedar confundia-se com a
própria essência do ser-criança (uau, isso é profundo). Geralmente praticávamos
mais com nossos irmãos. Deixe-me explicá-la melhor para as crianças de hoje.
Arremedar consiste (ou consistia, sei lá) em colocar a voz
em falsete e provocar a outra criança, ridicularizando-a por meio da repetição exata
das palavras que ela tinha nos dirigido. Então, se a outra criaturazinha dizia:
“Vou te dar um murro”, você repetia: “Vou te dar um murro”, não no mesmo estado
de nervos daquele que o ameaçou, mas de modo bem debochado, geralmente com a
língua entre os dentes, tornando as palavras moles e desacreditadas.
Entenderam? Provavelmente não, pois arremedar tem muito de teatral, daí
chamá-la de arte.
E uma disputa de arremedo? Que coisa emocionante que era! Não
tinha coisa mais prazerosa que ver o seu adversário desistindo: depois de
muitas rodadas, você arremedava, chegava a vez dele – e o que acontecia? Ele
entregava os pontos, não só não
arremedava como gritava que você estava arremedando-o (ué?, mas era uma disputa!),
recorrendo à autoridade do pai, da mãe ou de outro adulto, o qual já chegava de
chinelo na mão e lhe aplicava algumas palmadas. Palmadas mesmo, não arremedo de
palmadas!
Injusto nisso tudo é que você
ganhava a disputa de arremedo e era “premiado” com palmadas!? No entanto, se
uma pessoa mais observadora prestasse atenção em você depois do choro, um secreto
sorriso esboçava-se no seu angelical rostinho. Não me lembro de sensação mais
poderosa e tranquilizadora que a de saber-se vencedor na arte de arremedar.
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