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segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A decadência da arte de arremedar



Já contei essa história para meus colegas e minhas colegas de profissão. Uma história muito educativa.
Vez por outra me encontro com um senhor que tem uma filha morando nos Estados Unidos. Soube disso através dele. Instigados por uma empatia recíproca, sempre que nos encontramos na rua, furtamos cinco minutos de nossas obrigações diárias para ele me contar alguma novidade.
Da última vez que nos vimos, ele me falou, orgulhoso, de uma netinha de três anos que está sob os seus cuidados. “Ela é muito inteligente”, disse-me ele.
- É? – perguntei.
- É. Outro dia eu fui dar o comer dela, aí perguntei a ela: “Vamos comer, minha filha?”. Ela respondeu: “Vou não, cara de...” (a menina soltou um palavrão sonoro e impublicável). Terminou sua historinha, ele deu uma gostosa gargalhada.
- Nossa, que menina inteligente! – comentei , sem demonstrar minha perplexidade (antes atônito que afônico, pensei).


Woody Allen nos provou em “Meia-noite em Paris” que toda idealização do passado é uma armadilha. Portanto, nada de fazer uma lista das “coisas boas que não voltam mais”. Contudo, tenho a ligeira impressão que as crianças hoje dominam e fazem uso de um estoque maior de palavrões. Não quero aqui publicar um libelo moralizante sobre o assunto nem procurar explicá-lo, mas, repito, a minha impressão é que as crianças – e os adultos também – estão, digamos, com uma proficiência cada vez maior no baixo calão.
Por outro lado, constato estar em decadência a arte de arremedar. Quando foi a última vez que vi uma criança praticando-a? Não lembro.
No nosso tempo, a arte de arremedar confundia-se com a própria essência do ser-criança (uau, isso é profundo). Geralmente praticávamos mais com nossos irmãos. Deixe-me explicá-la melhor para as crianças de hoje.
Arremedar consiste (ou consistia, sei lá) em colocar a voz em falsete e provocar a outra criança, ridicularizando-a por meio da repetição exata das palavras que ela tinha nos dirigido. Então, se a outra criaturazinha dizia: “Vou te dar um murro”, você repetia: “Vou te dar um murro”, não no mesmo estado de nervos daquele que o ameaçou, mas de modo bem debochado, geralmente com a língua entre os dentes, tornando as palavras moles e desacreditadas. Entenderam? Provavelmente não, pois arremedar tem muito de teatral, daí chamá-la de arte.
E uma disputa de arremedo? Que coisa emocionante que era! Não tinha coisa mais prazerosa que ver o seu adversário desistindo: depois de muitas rodadas, você arremedava, chegava a vez dele – e o que acontecia? Ele entregava os pontos, não só não arremedava como gritava que você estava arremedando-o (ué?, mas era uma disputa!), recorrendo à autoridade do pai, da mãe ou de outro adulto, o qual já chegava de chinelo na mão e lhe aplicava algumas palmadas. Palmadas mesmo, não arremedo de palmadas!
Injusto nisso tudo é que você ganhava a disputa de arremedo e era “premiado” com palmadas!? No entanto, se uma pessoa mais observadora prestasse atenção em você depois do choro, um secreto sorriso esboçava-se no seu angelical rostinho. Não me lembro de sensação mais poderosa e tranquilizadora que a de saber-se vencedor na arte de arremedar.

Portanto, um conselho altamente educativo: crianças, não falem palavrões, arremedem. Não deixem que a arte de arremedar caia definitivamente no esquecimento. 


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