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domingo, 11 de janeiro de 2015

A silenciosa e criativa rebeldia dos que compram calças masculinas



Há um episódio pouco conhecido da história do Brasil. Trata-se do “Quebra-quilos”, revolta que começou na Paraíba e espalhou-se por outros estados nordestinos.
Era época do Império, sob a regência de Dom Pedro II. Em 1862, o governo imperial tornou obrigatório o uso do Sistema Métrico Francês, em substituição ao sistema de pesos e medidas vigente na época. Foi estabelecido o prazo de dez anos para a substituição gradual de um sistema pelo outro. Mas, passado esse prazo, poucas providências tinham sido tomadas para que as mudanças acontecessem. O governo determinou que a partir de julho de 1873 as mercadorias deveriam ser medidas ou pesadas de acordo com o novo sistema de pesos e medidas e quem desobedecesse a essa ordem seria punido com multa ou prisão.
Naquela época usavam-se medidas como a vara para a venda de tecidos, as libras e os arreteis para a carne seca, o bacalhau e o açúcar. Líquidos se mediam em canadas e quartilhos e o arroz, o feijão e a farinha em selamins, quartas e alqueires. A obrigatoriedade de abandonar essas medidas tradicionais e adotar o sistema métrico francês, aliada às medidas repressivas como a prisão pelo não cumprimento da lei, além dos altos impostos cobrados pelo governo, fez com que a revolta eclodisse, levando as pessoas a questionar as autoridades governamentais, recolher os pesos e medidas e jogá-los nos açudes. De 1874 a 1875, populações da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas enfrentaram as forças do governo imperial. Essa foi a Revolta do Quebra-Quilos.

Eis que estamos numa reunião para discutir o ensino da matemática no ciclo de alfabetização e levanto a questão dessas medidas não oficiais, ainda hoje existentes, principalmente na zona rural, e que muitas vezes a escola ignora ou discrimina. São dados exemplos os mais variados, mas o que mais me chama a atenção é o relato da professora Maria do Carmo, que lembra que muitos homens, quando vão comprar calça, usam o próprio pescoço como instrumento de medida: colocam a metade da circunferência externa da calça (a parte de trás, a parte da bunda) ao redor do pescoço; se as extremidades se encontram, sem sobra de tecido, a calça serve.  Diante de minha admiração, as demais pessoas presentes confirmam a infalibilidade do método, com uma ressalva: não vale para as mulheres, só para os homens. Todos ali já sabiam disso, exceto eu.
Vejo essa forma de comprar calças masculinas como uma rebeldia silenciosa e criativa do povo contra as medidas padronizadas da indústria de confecções.  
Eis que estamos numa reunião de orientadores de estudos, novamente discutindo conceitos e métodos para o bom encaminhamento da matemática nos anos iniciais de escola, e relato aos meus companheiros e companheiras de reflexões a “minha” descoberta daquele método de comprar calças. Todos sorriem com meu ar de surpresa: não era novidade para eles. Mesmo assim, decido fazer uma enquete e peço que, como eu, levante a mão quem desconhecia aquele inusitado uso do pescoço masculino; ninguém ergueu o braço; eu, somente eu, ignorava esse gesto social que acontece diariamente em milhares de feiras e lojas de roupas pelo Brasil afora. Terminada a rápida enquete, uma colega me pergunta onde eu nasci, questionamento que eu traduzi como: “de que planeta você é?”.
Chego em casa ainda encantado com a novidade-já-não-tão-nova (encanto-me facilmente com as coisas que aprendo) e vou jantar um belíssimo baião-de-dois.
Baião-de-dois feito com um mói de feijão verde comprado na véspera. Faltou a cuia de farinha.

Pio XII, Maranhão, 18h31min de 11/01/2015.

Para todos os que lutam pela alfabetização na idade certa em nosso país.

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